Características da ideologia
É interessante observar que a ideologia não é urna mentira que a classe dominante inventa para subjugar a classe dominada, porque inclusive os que se beneficiam dos privilégios estão impregnados por ela, e também eles se convencem da verdade dessas ideias. Vamos então distinguir as características da ideologia.
a) Naturalização
A naturalização consiste em aceitar como naturais situações que na verdade resultam da ação humana e, como tais, são históricas. Por exemplo: afirmar que desde sempre existiram pobres e ricos, sendo impossível mudar esse estado de coisas. Assim diz o dramaturgo Bertolt Brecht na peça A exceção e a regra:
Nós vos pedimos com insistência:
Nunca digam -Isso é natural!
[ ... ]
A fim de que nada passe por ser imutável.
[ ... ]
Sob o familiar, descubram o josó ljto.
Sob o cotidiano, desvelem o inexp licável.
Que tudo que seja dito ser habitual,
Cause inquietação.
Na regra é preciso descobrir o abuso.
E sempre que o abuso for encontrado,
É preciso encontrar o remédio.2
Nunca digam -Isso é natural!
[ ... ]
A fim de que nada passe por ser imutável.
[ ... ]
Sob o familiar, descubram o josó ljto.
Sob o cotidiano, desvelem o inexp licável.
Que tudo que seja dito ser habitual,
Cause inquietação.
Na regra é preciso descobrir o abuso.
E sempre que o abuso for encontrado,
É preciso encontrar o remédio.2
b) Universalização
Outra característica da ideologia é a universalização, pela qual os valores da classe dominante são estendidos aos que a ela se submetem. É assim que a empregada doméstica "boazinha" não discute salário nem reclama se trabalha além do horário. Também os missionários que acompanhavam os colonizadores às terras conquistadas certamente não percebiam o caráter ideológico da sua ação ao imporem sua religião e moral ao povo dominado.
c) Abstração e aparecer social
A universalidade das ideias e dos valores resulta de uma abstração, ou seja, as representações ideológicas não se referem ao concreto, mas ao aparecer social. A sociedade "una e harmônica'' é portanto uma abstração, porque, ao analisarmos concretamente as relações sociais, descobrimos a divisão em classes e os conflitos de interesses. Por exemplo, é difícil contestar que "o trabalho dignifica''. É verdade, bem sabemos que o trabalho é condição de nossa humanização, mas essa afirmação é ideológica quando consideramos apenas a ideia de trabalho, independentemente da análise da situação concreta e histórico social em que de fato é realizado. Nesse caso, o que descobrimos pode ser exatamente o contrário: o trabalho como embrutecimento e condição de reificação ( coisificação) do ser humano. Basta saber que no tempo de Marx as indústrias inglesas contratavam trabalhadores para uma jornada extensa, sem direito a férias, auxílio para doença ou invalidez nem aposentadoria, além de arregimentarem crianças e mulheres como mão de obra mais barata. O rico se banqueteia enquanto os trabalhadores lutam (1923), afresco de José Clemente Orozco (1883-1947). Orozco participou do grupo dos muralistas mexicanos, com David Alfaro Siqueiros e Diego Rivera. O tema constante de seus trabalhos é a luta do povo e o ideal da revolução socialista.
d) Lacuna
Ao dizer que "o salário paga o trabalho", podemos identificar uma lacuna quando, analisando a gênese do trabalho assalariado, descobrimos a mais-valia. Esse artifício, do qual deriva a exploração do trabalhador e sua alienação, oculta condições de vida diferentes para as pessoas na sociedade.
e) Inversão
A ideologia representa a realidade invertida, ou seja, o que seria a origem da realidade é posto como produto
e vice-versa: o que é efeito é tomado como causa. Exemplificando: segundo a ideologia burguesa, a desigualdade social resulta de diferenças individuais: os indivíduos são desiguais por natureza, e a desigualdade social é, portanto, inevitável. Para Marx, contudo, a divisão social do trabalho e das relações de produção é, de fato, a causa da desigualdade social. Se o filho do operário não melhora o padrão de vida, a explicação ideológica atribui o insucesso à incompetência, falta de força de vontade ou indisciplina. É verdade que não se pode desprezar as diferenças entre os indivíduos, mas pelo enfoque ideológico o sucesso depende apenas da competência pessoal, sem levar em conta as dificuldades decorrentes da divisão de classes. É como se imaginássemos uma corrida em que alguns começam bem na frente dos outros apenas
porque nasceram em berço privilegiado. Outra inversão própria da ideologia decorre da hierarquia entre o pensar e o agir, que instaura a dicotomia entre o trabalho intelectual e o manual. Sob esse esquema, uma classe "sabe pensar", enquanto a outra "não sabe pensar" e, portanto, só executa o que lhe mandam fazer.
(ARANHA, Maria Lúcia de A. e MARTINS, Maria
Helena Pires. Filosofando: Introdução a filosofia. 4.
ed. São Paulo : Moderna, 2009. p.120-121)
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