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sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Estética II - A arte grega e o conceito de naturalismo


O naturalismo constitui uma noção fundamental que marcou profundamente grande parte da arte ocidental, da antiga Grécia até o final do século XIX, com uma única interrupção, durante a Idade Média.

• Conceito de naturalismo

O naturalismo, segundo Harold Osborne, pode ser definido como a ambição de colocar diante do observador uma semelhança convincente das aparências reais das coisas. A admiração pela obra de arte, nessa perspectiva, advém da habilidade do artista em fazer a obra parecer ser o que não é, parecer ser a realidade e não a representação. Na atitude naturalista, podemos distinguir algumas variações, dentre as quais as mais importantes são o realismo e o idealismo.

O realismo mostra o mundo como ele é, nem melhor nem pior. É característico, por exemplo, da arte renascentista do século XV. Já o idealismo retrata o mundo nas suas condições mais favoráveis. Na verdade, mostra o mundo como desejaríamos que fosse, melhorando e aperfeiçoando o real. É o padrão da arte grega, que não retrata pessoas reais, mas pessoas idealizadas. Foram os gregos que elaboraram a teoria das proporções do corpo humano usadas para qualquer representação, em pintura ou escultura, qualquer que fosse a realidade do modelo.

O rosto, por exemplo, era dividido em três partes de igual tamanho: um terço seria ocupado pela testa, um terço pelos olhos e nariz, e o terço restante, pela boca e pelo queixo. O naturalismo foi uma atitude dominante na arte ocidental por muitos séculos, com exceção, como veremos, do período medieval. Com o movimento impressionista, no século XIX, houve outra ruptura com essa atitude, pois os artistas passaram a dar primazia às variações da luz e não aos objetos representados.

Essa mudança de atitude se deve, em parte, ao aparecimento do "bisavõ' da máquina fotográficao daguerreótipo-, que fixa as imagens do mundo de forma mais rápida, econômica e precisa do que a tela pintada. Por essa razão, os artistas, principalmente os pintores, tiveram de repensar a função da arte e o espaço específico da pintura.

O naturalismo na arte grega

Na Grécia Antiga não havia a ideia de artista no sentido que hoje empregamos, uma vez que a arte estava integrada à vida. As obras de arte dessa época eram utensílios (vasos, ânforas, copos), edificações (templos) ou instrumentos educacionais. O artífice que os produzia era considerado um trabalhador manual, do mesmo nível do agricultor ou do ferramenteiro. Ele era um artesão, tinha domínio da~. numa sociedade que considerava o trabalho manual indigno.

Platão (séc. V a.C.) recusa-se a dar valor autônomo ao que chamamos de arte. Para ele, existe uma ordem metafísica e ética no mundo, sendo tarefa da filosofia descobri-la por meio do pensamento racional. A arte só poderia ter valor se representasse corretamente essa ordem ou nos ajudasse a agir de acordo com ela. Contudo, Platão reconhece o poder da poesia sobre a alma humana e dá indícios de que aprecia os prazeres que ela proporciona. 

Com relação à beleza, termo que ele usa com muitos sentidos diferentes, entre eles desejabilidade, valor de troca e agradabilidade à visão e à audição, ela não está relacionada às artes. Platão critica, inclusive, os sofistas e os retóricos por não saberem fazer a distinção entre o que é belo porque dá prazer, do que é genuinamente bom e benéfico. Para ele, a beleza em si é uma forma, acessível somente ao intelecto.

Platão faz a crítica da beleza no mundo sensível, dizendo que é variável (algo pode ser belo em um momento e não em outro), e é relativa (algo é belo em relação a algum aspecto mas não a outros; é belo para um observador e não o é para outro). Do outro lado, a beleza como forma não é variável - "sempre é: não se torna, nem acaba, não brilha, nem desvanece" (Symposium 21Ia). Nesse período (sécs. V e IV a.C.), a função da arte era criar imagens de coisas reais, que tivessem aparência de realidade. Para que esse objetivo fosse atingido, foram desenvolvidas técnicas que permitiam produzir cópias da aparência visível das coisas.

Há várias anedotas que ilustram bem isso, embora poucos exemplares da pintura grega tenham chegado até nós. Dizem que Apeles pintou um cavalo com tanto realismo que cavalos vivos relinchavam ao vê-lo. Outra história conta que Parrásio pintou uvas tão reais que passarinhos tentavam bicá-las. Na verdade, talvez essas pinturas só possam ser consideradas realistas em relação à estilização da pintura que a precedeu ou à pintura egípcia, por exemplo. Por outro lado, temos de admirar a fidelidade anatômica das esculturas gregas, tais como a Vitória de Samotrácia e o Discóbulo. 

Essa atitude perante a arte está fundada sobre o conceito de mímese. Para Platão, a mímese seria a imitação não da ideia (essência universal) da coisa, mas tão somente de sua aparência, isto é, de um objeto concreto e particular. Além disso, só se pode imitar algo a partir de um ponto de vista, não de todos, fazendo com que a imitação não seja exata, mas parcial. Portanto, ela está longe da verdade. No polo oposto, Aristóteles afirma que a mírnese é natural para as pessoas desde a infância, por ser um modo de aprendizado.

A mímese resulta em conhecimento porque copia corretamente o objeto e o simplifica. No que diz respeito à tragédia, ela é a mírnese de uma ação, de um acontecimento, e não das paixões. É um processo ativo de seleção de partes para apresentação. Não é passivo, cópia automática, como supunha Platão. Aristóteles traz de volta a necessidade da habilidade para se fazer poesia: o poeta é um compositor-criador de tramas, e não de versos.

Embora a poesia não seja rnímese do universal, Aristóteles sustenta que, mesmo que os objetos da mímese não sejam universais, eles podem resultar em um processo que apresente universais, porque a tragédia não trata de assuntos banais. Entretanto, é no sentido de cópia ou reprodução exata e fiel da realidade que a palavra mímese passa a ser adotada pela teoria naturalista. E as obras de arte, nessa perspectiva, são avaliadas segundo o padrão de correção estabelecido por Platão:

Mímese. Do grego, mímesis, normalmente traduzida por"imitação", significava muito mais que isso para os gregos. Para Platão, as palavras "imitam a realidade". Nesse caso, a tradução mais correta para mímese talvez fosse "representar", e não "imitar". Para Aristóteles, a arte "imita" a natureza. Arte, para ele, no entanto, englobava todos os ofícios manuais, indo da agricultura ao que hoje chamamos de belas-artes. Por isso, a arte, enquanto poiésis, ou seja, "construção", "criação a partir do nada", "passagem do não ser ao ser", imita a natureza no ato de criar, e não a aparência das coisas.

Discóbolo, cópia romana em mármore do original feito pelo ateniense Miron, por volta de 450 a.C. Essa escultura é urna representação idealizada do esportista no momento de maior concentração, quando se prepara para arremessar o disco. A harmonia da composição é dada pela intersecção de dois segmentos da linha curva. Um se i.nicia na mão que segura o disco, passa pelos ombros, desce pelo outro braço e chega ao pé esquerdo que está atrás. O outro liga esse mesmo pé à cabeça, passando pela curvatura das costas. Apesar da concentração do corpo, o rosto permanece tranqui.lo. Isso faz parte do idealismo da arte naturalista grega.

Agora suponhamos que, neste caso, o homem também não soubesse o que eram os vários corpos representados. Ser-lhe-ia possível ajuizar da justeza da obra do artista? Poderia ele, por exemplo, dizer se ela mostra os membros do corpo em seu número verdadeiro e natural e em suas situações reais, dispostos de tal forma em relação uns aos outros que reproduzam o agrupamento natural - para não falarmos na cor e na forma - ou se tudo isso está confuso na representação?

(ARANHA, Maria Lúcia de A. e MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução a filosofia. 4. ed. São Paulo : Moderna, 2009. p. 438-439)

Isto é arte?


O conceito de belo, como já discutimos, é eminentemente histórico. Cada época e cada cultura têm seu padrão de beleza próprio. Na contemporaneidade, exemplificada pela obra de Leda Catunda, é comum a incorporação do cotidiano, do efêmero e dos valores difundidos pelos meios de comunicação de massa ao universo da arte. Neste trabalho, o cotidiano nos é dado pelo material sobre o qual a pintura foi feita: o cobertor com estampa de onça é a realidade concreta, compartilhada pelo observador/público.

E, se o material causa estranheza, mais espantados ficamos ao perceber que é o fundo pintado com tinta acrílica que dá forma à imagem da onça. A figura, salvo poucas manchas preenchidas com tinta colorida, permaneceintocada, deixando entrever o tecido peludo do cobertor cuja padronagem (de pele de onça) sugeriu seu aproveitamento para essa obra de arte. O procedimento de vedação do fundo faz com que a figura salte aos olhos e "às mãos", uma vez que a maciez e a fofura próprias do cobertor apelam ao nosso sentido táctil. Ao inverter o procedimento tradicional de pintar a figura, dando menor importância ao fundo, a artista estabelece um diálogo irônico com a história da arte.

O fundo, em vários tons de verde com algumas pinceladas amarelas, nos faz pensar em floresta, mata, o hábitat natural das onças-pintadas, que só são encontradas na América Latina. A onça, entretanto, apesar da feição feroz com os dentes arreganhados e as longas garras, não está em posição que nos dê a ideia de vida. Ao contrário, as pernas esticadas em direção aos quatro ângulos do cobertor lembram os animais transformados em tapetes, exibidos como troféus por caçadores e outros consumidores desse tipo de souvenir.

Assim transformados, esses animais não oferecem mais perigo. Deixam de ser selvagens, donos das selvas, temidos, para entrar nas casas e serem literalmente pisados. A onça-pintada é uma imagem, comum no imaginário popular brasileiro, da qual a artista se apropriou para criar sua obra, colocando em questão as relações entre a realidade e a representação (presente na brincadeira entre a onça-pintada existente na natureza e a onça pintada por ela); entre o registro popular (do cobertor e da imagem da onça-pintada) e o erudito (da arte); entre o selvagem e amedrontador (a onça viva) e a pacificação da morte, do extermínio.

Cruzando essa imagem de 1984 com as preocupações ambientalistas do mundo no século XXI, podemos fazer outra leitura dessa obra: a onça é um animal em extinção e sua representação como "tapete" pode levantar uma série de questões sobre a ação do ser humano na natureza; a necessidade de preservação das espécies para se manter a riqueza biológica do planeta e do país; o futuro da humanidade; a ideia de "dominar a naturezà' como condição do progresso etc.

Assim como o restante da obra de Leda Catunda desse período, Onça pintada I coloca algumas questões sobre o que é arte: trata-se de uma brincadeira ou de um projeto poético sério? O artista precisa criar suas obras ou pode se apoderar de imagens e objetos já prontos, para desconstruí-los? A arte deve ter uma função crítica? Uma pintura deve sempre seguir a tradição e usar materiais convencionais, como a tela, o chassi sobre o qual ela é esticada, ou a madeira? Será que, em outras épocas, Onça pintada I seria considerada uma obra de arte? Para ajudar você a responder essas perguntas, vamos examinar as várias correntes estéticas que vieram a determinar não só as relações entre arte e realidade, porém, mais importante ainda, o estatuto e a função da obra de arte.

(ARANHA, Maria Lúcia de A. e MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução a filosofia. 4. ed. São Paulo : Moderna, 2009. p. 437)

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Racionalismo IV

 

A astronomia e a geometrização do espaço

A teoria geocêntrica encontra-se nas obras de Aristóteles, posteriormente completadas por Ptolomeu (séc. II). Essa concepção, que perdurou durante toda a Antiguidade e a Idade Média, descreve um Universo finito, esférico, hierarquizado. O geocentrismo era de certo modo confirmado pelo senso comum: percebemos que a Terra é imóvel e que o Sol gira à sua volta. No próprio texto bíblico lê-se uma passagem em que Deus fez parar o Sol para que o povo eleito continuasse a luta enquanto ainda houvesse luz, o que sugere o Sol em movimento e a Terra fixa.

No século XVI, o monge Nicolau Copérnico (1473--1543) publicou Das revoluções dos corpos celestes, obra em que expõe o heliocentrismo. A obra foi praticamente ignorada até o início do século XVII, quando as teorias nela propostas ressurgiram com Galileu e Kepler. A luneta proporcionou a Galileu descobertas valiosas: para além das estrelas fixas, haveria ainda infindáveis mundos; a superfície da Lua é rugosa e irregular; o Sol tem manchas; e em torno de Júpiter existem quatro luas!

Como isso seria possível? Vimos que para os aristotélicos o Universo é finito, a Lua e o Sol são compostos de uma substância incorruptível e perfeita e Júpiter, engastado em uma esfera de cristal, não poderia ter luas que a perfurassem. Os fenômenos da física e da astronomia, antes explicados de acordo com as diferenças de natureza dos corpos perfeitos e imperfeitos, tomam-se homogêneos, já que não há mais como reconhecer a incorruptibilidade do mundo supralunar: desfaz-se, portanto, a diferença entre Terra e Céus.

Além disso, à consciência medieval de um "mundo fechado'' é contraposta a concepção moderna do "Universo infinito''. Essas concepções representaram um grande abalo, pois sempre houve uma mística do lugar. Para os antigos havia lugares privilegiados: Hades(Infernos); Olimpo (lugar dos deuses); o espaço sagrado do templo; o espaço público da ágora (praça pública); o gineceu (lugar da mulher).

O filósofo contemporâneo Alexandre Koyré, ao explicar as grandes mudanças que ocorreram no século XVII, diz que elas pareciam ser redutíveis a duas ações fundamentais e estreitamente relacionadas entre si, que ele caracterizou como a destruição do cosmo e a geometrização do espaço. Isso significa que o espaço heterogêneo dos lugares naturais tornou-se homogêneo e, despojado das qualidades, passou a ser quantitativo e, portanto, mensurável.

Podemos dizer que houve uma "democratização" dos espaços, pois todos tornam-se equivalentes, nenhum é superior ao outro. Negada a diferença entre a qualidade dos espaços celestes e terrestres, é possível admitir que as leis da física aplicam-se igualmente a todos os corpos do Universo.

 

(ARANHA, Maria Lúcia de A. e MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução a filosofia. 4. ed. São Paulo : Moderna, 2009. p. 367)

Racionalismo III - Galileu Galilei


Galileu e as duas novas ciências


Em 1638, à revelia da Inquisição, foi publicada na Holanda a obra Discursos e demonstrações matemáticas sobre duas novas ciências, quando seu autor, Galileu, já cego, ainda se encontrava em prisão domiciliar. A partir desse último e importante trabalho, em que relaciona a hipótese capricorniana às leis da mecânica, ligando a ciência da astronomia à física, pode-se dizer que nascia a física moderna e uma nova concepção de astronomia.

A nova física

A produção teórica e experimental de Galileu só foi possível porque ele dispunha em sua oficina de recursos como plano inclinado, termômetro, luneta e relógio de água. Embora ainda fossem engenhocas um tanto primitivas, foram suficientes para mostrar o valor da observação, o que lhe permitiu abandonar a ciência especulativa e caminhar em direção à construção de uma ciência ativa.

Em oposição ao discurso formal, Galileu solicita o testemunho dos sentidos e o auxílio da técnica. Valoriza os experimentos e, ao contrário da física antiga, que buscava explicar o "porquê" do fenômeno pelas qualidades inerentes aos corpos, Galileu se interessa pelo "como", o que supõe a descrição quantitativa do fenômeno.

Por meio dessa descrição, distingue as qualidades secundárias (cor, odor, sabor) das qualidades primárias (forma, figura, número e movimento). As secundárias são subjetivas, enquanto as primárias são objetivas e passíveis de tratamento matemático, o que permite a Galileu assimilar o espaço físico ao espaço geométrico de Euclides.

Assim ele explica: 

A filosofia encontra-se escrita neste grande livro que continuamente se abre perante nossos olhos (isto é, o Universo), que não se pode compreender antes de entender a língua e conhecer os caracteres com os quais está escrito. Ele está escrito em língua matemática, os caracteres são triângulos, circunferências e outras figuras geométricas, sem cujos meios é impossível entender humanamente as palavras: sem eles nós vagamos perdidos dentro de um obscuro labirinto.

Quanto ao movimento, Galileu recusa a teoria aristotélica que distingue o movimento qualitativo do movimento quantitativo para considerar toda mudança quantitativa. Com isso, estabelece um corte entre as duas leituras do mundo, pois, onde Aristóteles via qualidades (corpos pesados ou leves), Galileu descobre relações e proporções.

Quando estuda Arquimedes e vê que as leis do equilfbrio dos corpos flutuantes são verdadeiras, destrói a teoria da "gravidade" e "leveza'' dos corpos. "Subir" e "descer" não atestam mais a ordem imutável do mundo, a essência escondida das coisas. Por exemplo: onde está a "gravidade" quando mergulhamos a madeira na água, uma vez que ela se torna "leve", a ponto de só poder mover-se para
baixo se for forçada? 

Ao explicar "como'' os corpos caem (e não "porque" caem), Galileu descobre a relação entre o tempo que um corpo leva para percorrer o plano inclinado e o espaço percorrido. Repetidas experiências confirmam as relações constantes e necessárias, donde decorre a lei da queda dos corpos, traduzida numa forma geométrica. Não estamos, porém, diante de uma ciência que parte apenas de dados empíricos. 

O procedimento de Galileu não é sempre indutivo, pois nem todas as vezes parte dos fatos para as leis. Em muitas ocasiões realiza "experiências mentais", pelas quais imagina situações impossíveis de verificar empiricamente e tira conclusões desses raciocínios. O que dá validade científica aos processos intelectuais é que os resultados devem ser submetidos à comprovação. 

Uma grande descoberta alcançada com esse método foi o princípio da inércia, segundo o qual qualquer objeto não submetido à ação de uma força permanece indefinidamente em repouso ou
em movimento uniforme. Ora, isso não acontece de jato, pois não é levado em conta o atrito, mas pode ser pensado como se ocorresse. 

Galileu é um dos expoentes dos novos tempos: a ciência nascente não resulta de simples desenvolvimento, mas surge de uma ruptura, da adoção de uma nova linguagem, fruto, portanto, de uma revolução científica. 

Embora Galileu se referisse à "filosofia'' (esse saber universal), já começava aí o processo de separação entre ciência e reflexão filosófica. Método, em grego, significa "caminho''. E esse caminho Galileu encontra na união da experimentação com a matemática.

(ARANHA, Maria Lúcia de A. e MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução a filosofia. 4. ed. São Paulo : Moderna, 2009. p. 365 )

Racionalismo II


Características do pensamento moderno

A partir do Renascimento, a religião, suporte do saber na Idade Média, sofreu diversos abalos com o questionamento da autoridade papal, o surgimento do protestantismo e a consequente destruição da unidade religiosa na Europa Ocidental. Decorrem daí as características desse novo momento histórico.

 Antropocentrismo: enquanto o pensamento medieval é predominantemente teocêntrico, o indivíduo moderno coloca a si próprio no centro dos interesses e decisões. Às certezas da fé, contrapõe-se a capacidade de livre exame. Até na religião os adeptos da Reforma defendem o acesso direto ao texto bíblico, dando a cada um o direito de interpretá-lo.

Racionalismo: ao critério da fé e da revelação, opõe-se o poder exclusivo da razão de discernir, distinguir e comparar; a atitude polêmica perante a tradição recusa o dogmatismo.

O saber ativo: em oposição ao saber contemplativo, o conhecimento não parte apenas de noções e princípios, mas da própria realidade observada e submetida a experimentações; como decorrência, o saber adquirido devido à aliança entre a ciência e a técnica deve voltar à realidade para transformá-la.

O método: a busca do método adequado marca o ponto de partida de vários pensadores do século XVII, como Descartes, Espinosa e Francis Bacon. O próprio Galileu, no mesmo século, teorizou sobre o método científico, o que representou uma verdadeira revolução: o rompimento da ciência com a filosofia aristotélico-escolástica, em busca de seu próprio caminho.

(ARANHA, Maria Lúcia de A. e MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução a filosofia. 4. ed. São Paulo : Moderna, 2009. p. 365)

CRISE DA RAZÃO I

 

1. INTRODUÇÃO

O que é a razão? Quando o ser humano começou fazer uso desta faculdade?

RAZÃO - Destacaremos primeiro que tudo, vários significados do termo razão:

1. Chama-se razão a certa faculdade atribuída ao homem e por meio da qual foi distinguido dos restantes membros da série animal. Esta faculdade é definida usualmente como uma capacidade de atingir conhecimento do universal, ou do universal e necessário, de ascender até ao reino das ideias, quer seja como essências, quer seja como valores, ou ambos. Na definição “o homem é um animal racional” o ser racional é admitido como a diferença específica.

2. Entende-se a razão como equivalente ao fundamento; a razão explica então porque é que algo é como é e não de outro modo.

3. A razão define-se às vezes como um dizer. Com frequência se supõe que este _dizer (logos) se fundamenta num modo de ser racional.

2. DESENVOLVIMENTO

Tales, O primeiro filósofo.

A filosofia grega parece começar com uma idéia absurda, com a proposição: a água é a origem e a matriz de todas as coisas. Será mesmo necessário deter-nos nela e levá-la a sério? Sim, e por três razões: em primeiro lugar, porque essa proposição enuncia algo sobre a origem das coisas; em segundo lugar, porque faz sem imagem e fabulação; e enfim, em terceiro lugar, porque nela, embora apenas em estado de crisálida, está contido o pensamento: "Tudo é um".

A razão citada em primeiro lugar deixa Tales ainda em comunidade com os religiosos e supersticiosos, a segunda o tira dessa sociedade e no-lo mostra como investigador da natureza, mas, em virtude da terceira, Tales se torna o primeiro filósofo grego- Se tivesse dito: "Da água provém a terra", teríamos apenas uma hipótese científica, falsa, mas dificilmente refutável. Mas ele foi além do científico. Ao expor essa representação de unidade através da hipótese da água, Tales não superou o estágio inferior das noções físicas da época, mas, no máximo, saltou por sobre ele.

As parcas e desordenadas observações da natureza empírica que Tales havia feito sobre a presença e as transformações da água ou, mais exatamente, do úmido, seriam o que menos permitiria ou mesmo aconselharia tão monstruosa generalização; o que o impeliu a esta foi um postulado metafísico, uma crença que tem sua origem em uma intuição mística e que encontramos em todos os filósofos, ao lado dos esforços sempre renovados para exprimi-Ia melhor - a proposição: "Tudo é um".

E notável a violência tirânica com que essa crença trata toda a empiria: exatamente em Tales se pode aprender como procedeu a filosofia, em todos os tempos, quando queria elevar-se a seu alvo magicamente atraente, transpondo as cercas da experiência.

NIETZSCHE, W. Friedrich. A filosofia na época trágica dos gregos.

Kierkegaard: razão e fé

Sören Kierkegaard (1813-1885), pensador dinamarquês, é um dos precursores do existencialismo contemporâneo. Dentre suas obras, destacamos Temor e tremor, O conceito de angústia, Migalhas filosóficas. Severo crítico da filosofia moderna, Kierkegaard afirma que desde Descartes até Hegel o ser humano não é visto como ser existente, mas como abstração - reduzido ao conhecimento objetivo - , quando na verdade a existência subjetiva, pela qual o indivíduo toma consciência de si, é irredutível ao

pensamento racional, e por isso mesmo possui valor filosófico fundamental.

A esse respeito, o professor Benedito Nunes completa: “Não se diga, porém que ela [a existência] é incognoscível. Ao contrário, dada a imediatidade, para o homem, entre ser e existir, o conhecimento que temos da existência é fundamental, prioritário. O homem se conhece a si mesmo como existente. Esse conhecimento, inseparável da experiência individual, não transforma a existência num objeto exterior ao sujeito que conhece.

Para Kierkegaard, a existência é permeada de contradições que a razão é incapaz de solucionar. Critica o sistema hegeliano por explicar o dinamismo da dialética por meio do conceito, quando deveria fazê-lo pela paixão, sem a qual o espírito não receberia o impulso para o salto qualitativo, entendido como decisão, ou seja, como ato de liberdade. Por isso é importante na filosofia de Kierkegaard a reflexão sobre a angústia que precede o ato livre.

A consciência das paixões leva o filósofo – e também teólogo - a meditar sobre a fé religiosa como estágio superior da vida espiritual. Para ele, a mais alta paixão humana é a fé. É ela que nos permite o "salto no escuro'' que é o "salto da fé". Mas ela é, também, uma paixão plena de paradoxos.

Como exemplo, o filósofo cita Abraão, personagem do Antigo Testamento que se dispõe a sacrificar o próprio filho para obedecer à ordem divina: não porque a compreendesse, mas porque tinha fé. O estágio religioso é para Kierkegaard o último de um caminho que o indivíduo pode percorrer na sua existência, sendo superior inclusive à dimensão puramente ética.

3. CONTEXTUALIZAÇÃO

A razão é a faculdade principal pela qual somos capazes de vivermos de forma organizada, pactuada, sem agirmos de forma egoísta e violenta. Porém nos últimos anos experimentamos uma volta a vida que de certa forma nega a razão. Como você percebe a nossa sociedade? racional ou passional?

4. ATIVIDADES

Produzir um texto sobre a Fé e a Razão. 30 linhas

Fazer uma pesquisa como algumas pessoas sobre suas vidas e o fator determinante se é a Razão ou a Paixão. Entregar na próxima aula.

 

(ARANHA, Maria Lúcia de A. e MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução a filosofia. 4. ed. São Paulo : Moderna, 2009. p.)

LÓGICA

 

1. INTRODUÇÃO

Para Aristóteles, a lógica não é ciência e sim um instrumento (órganon) para o correto pensar.

O estudo da lógica serve para organizar as ideias de modo mais rigoroso, para que não nos enganemos em nossas conclusões. Vamos aqui examinar como surgiu a lógica na Antiguidade grega. Embora os sofistas e também Platão tenham se ocupado com questões lógicas, nenhum deles o fez com a amplitude e o rigor alcançados por Aristóteles (séc. IV a.C.). O próprio filósofo, porém, não denominou seu estudo de lógica, palavra que só apareceu mais tarde, talvez no século seguinte, com os estoicos.

ETIMOLOGIA

Lógica. Do grego logos, "palavra", "expressão", "pensamento", "conceito", "discurso", "razão".

2. DESENVOLVIMENTO

Silogismo

Silogismo nada mais é do que um argumento constituído de proposições das quais se infere (extrai) uma conclusão. Assim, não se trata de conferir valor de verdade ou falsidade às proposições (frases ou premissas dadas) nem à conclusão, mas apenas de observar a forma como foi constituído. É um raciocínio mediado que fornece o conhecimento de uma coisa a partir de outras coisas (buscando, pois, sua causa).

Termo e proposição

A proposição é um enunciado no qual afirmamos ou negamos um termo (um conceito) de outro. No exemplo "Todo cão é mamífero'' (Todo C é M), temos uma proposição em que o termo "mamífero'' afirma-se do termo "cão''.

Princípios da lógica

Para compreender as relações que se estabelecem entre as proposições, foram definidos os primeiros

princípios da lógica, assim chamados por serem anteriores a qualquer raciocínio e servirem de base a todos os argumentos. Por serem princípios, são de conhecimento imediato e, portanto, indemonstráveis.

Geralmente distinguem-se três princípios: o de identidade, o de não contradição e o do terceiro excluído.

Argumentação

A argumentação é um discurso em que encadeamos proposições para chegar a uma conclusão.

Exemplo: O mercúrio não é sólido. (premissa maior)

O mercúrio é um metal. (premissa menor)

Logo, algum metal não é sólido. (conclusão)

Estamos diante de uma argumentação composta por três proposições em que a última, a conclusão, deriva logicamente das duas anteriores, chamadas premissas.

Quadrado de oposições

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Com base na classificação das proposições segundo a quantidade e a qualidade, são possíveis diversas combinações, que podem ser visualizadas pelo chamado quadrado de oposições, diagrama que explícita as relações entre proposições contrárias, subcontrárias, contraditórias e subalternas.

Vamos identificar cada proposição com uma letra: A (gerais afirmativas), E (gerais negativas), I (particulares afirmativas) e O (particulares negativas). Para exemplificar, partimos da proposição geral afirmativa "Todo F é G":

Tipos de argumentação

Tradicionalmente dividimos os argumentos em dois tipos, os dedutivos e os indutivos, sendo que a

analogia constitui um tipo de indução.

Falácias

A falácia, ou paralogismo, é um tipo de raciocínio incorreto, apesar de ter a aparência de correção. É conhecida também como sofisma, embora alguns estudiosos façam urna distinção, pela qual o sofisma teria a intenção de enganar o interlocutor, diferentemente da falácia, que seria um engano involuntário.

A lógica pós-aristotélica

Até o século XIX, a lógica aristotélica não passou por mudança essencial, apesar de ter sofrido as mais diversas críticas. Hostil a Aristóteles, a filosofia na Idade Moderna procurou caminhos diferentes daqueles trilhados pelo filósofo grego e pelos medievais.

3. CONTEXTUALIZAÇÃO

A lógica faz parte do nosso cotidiano. Na família, no trabalho, no lazer, nos encontros entre amigos, na política, sempre que nos dispomos a conversar com as pessoas usamos argumentos para expor defender nossos pontos de vista. Os pais discutem com seus filhos adolescentes sobre o que podem ou não fazer, e estes rebatem com outros argumentos. Se assim é, tanto melhor que saibamos o que sustenta nossos raciocínios, o que os torna válidos e em que casos são incorretos.

4. ATIVIDADES

Leitura do livro o alienista de Machado de Assis

(ARANHA, Maria Lúcia de A. e MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução a filosofia. 4. ed. São Paulo : Moderna, 2009. p. 130 )

VALORES

 

1. INTRODUÇÃO

VALOR—Trataremos do conceito de valor num sentido filosófico geral, como conceito capital na chamada teoria dos valores, e também axiológica e estimativa. Característico desta teoria é que não somente se usa o conceito de valor, mas que se procede a refletir sobre o mesmo e a determinar a natureza e caráter do valor e dos chamados juízos de valor. Isto distingue a teoria dos valores de um sistema qualquer de juízos de valor. Semelhantes sistemas são muito anteriores à teoria dos valores propriamente dita, visto que muitas doutrinas filosóficas, desde a antiguidade, contêm juízos de valor. Muito comum foi em certas doutrinas antigas equiparar o ser com o valor, e, mais especialmente, o ser verdadeiro com o valor (Platão). A equiparação do ser com o valor não é, todavia, uma teoria dos valores.

2. DESENVOLVIMENTO

Atribui-se aos valores as seguintes características:

1. O valer na classificação dada pela teoria dos objetos, há um grupo destes que não pode caracterizar-se pelo ser, como os objetos reais e os ideais. Destes objetos diz-se que valem e, portanto, que não têm ser, mas valer. A característica do valor é o ser valente, diferentemente do ser ente. A bondade, a beleza, a santidade, não são coisas reais, mas tão poucos entes ideais. Os valores são intemporais e por isso têm sido confundidos às vezes com as idealidades, mas a sua forma de realidade não é o ser ideal nem o ser real, mas o ser valioso. A realidade do valor é, portanto, o valer.

2. Objetividade: Os valores são objetivos, quer dizer, não dependem das preferências individuais, mantendo a sua forma de realidade para além de toda a e valorização. A teoria relativista dos valores sustenta que os atos de agrado e desagrado são o fundamento dos valores. A teoria absolutista sustenta, em contrapartida, que o valor é o fundamento de todos os atos. A primeira afirma que tem valor o desejável. A segunda sustenta que é desejável e valioso. Os relativistas desconhecem a forma peculiar e irredutível de realidade dos valores. Os absolutistas chegam nalguns casos à eliminação dos problemas que a relação efetiva entre os valores e a realidade humana e histórica põe. Os valores são, segundo alguns autores, objetivos e absolutos, mas não são hipóstases metafísicas das ideias do valioso. A objetividade do valor é apenas a indicação da sua autonomia em relação a qualquer estimação subjetiva e arbitrária. A região ontológica valor não é sistema de preferências subjetivas às quais se dá o título de “coisas preferíveis”, mas tão pouco é uma região metafísica de seres absolutamente transcendentes.

3. Não independência: Os valores não são independentes, mas esta dependência não deve ser entendida como uma subordinação do valor a instâncias alheias, mas como a necessária aderência do valor às coisas. Por isso os valores fazem sempre referência ao ser e são expressos como predicações do ser.

4. Polaridade: Os valores apresentam-se sempre polarmente, porque não são entidades diferentes como as outras realidades. Ao valor da beleza contrapões-se sempre o da fealdade; ao da bondade, o da maldade; ao do santo, o do profano.

5. Qualidade: os valores são totalmente independentes da quantidade e por isso não podem estabelecer-se relações quantitativas entre as coisas valiosas.

6. Hierarquia: O conjunto de valores é oferecido numa tabela geral ordenada hierarquicamente. Esta caracterização dos valores corresponde à axiologia final, que se limita a declarar as notas determinantes da realidade estimativa. A axiologia material, em compensação, estuda os problemas concretos do valor e dos valores e em particular as questões que afetam a relação entre os valores e a vida humana, assim como a efetiva hierarquia dos valores. Cada um destes problemas recebe soluções diferentes segundo a concepção subjetiva e objetivista dos valores, segundo os valores sejam concebidos como produtos da valoração ou como realidades absolutas.

A investigação das relações entre o valor e a concepção do mundo representa um dos problemas mais espinhosos da axiologia material, pois a sua solução depende, por sua vez, em parte, da concepção do mundo vigente ou sustentada pelo investigador.

3. CONTEXTUALIZAÇÃO

Em uma sociedade onde o valer e o valor são colocados em cheque a cada instante como termos valores que nos protege e ao mesmo tempo nos conduz a vida. Às vezes delegamos à religião a função de valorar (introduzir valores) a sociedade e esquecemos que as religiões também devem observar valores que estão além das estruturas religiosas.

4. ATIVIDADES

Produzir um dissertação em grupo sobre os valores e a criação de valores em um mundo marcado pela liquidez das coisas. (Ver: Modernidade Líquida de Zygmunt Bauman) A partir deste artigo os alunos podem criar um tribunal onde irão julgar os valores da nossa sociedade.

MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. Lisboa, Dom Quixote: 1978.

RACIONALISMO I

 

Uma nova mentalidade

Em seu livro Pensamentos, Pascal diz o seguinte: O silêncio desses espaços infinitos me apavora. Essa frase explicita a angústia para quem, no século XVII, vivenciou a substituição da teoria geocêntrica - aceita durante mais de vinte séculos - pela teoria heliocêntrica. A nova teoria não apenas retirou a Terra do centro do Universo, mas também desintegrou uma construção estética que ordenava os espaços e hierarquizava o "mundo superior dos Céus" e o "mundo inferior e corruptível da Terra'. Galileu geometrizou o Universo, igualando todos os espaços. Ao descobrir a Via Láctea, contrapôs, a um mundo fechado e finito, a ideia da infinitude do Céu.


A questão, no entanto, não é apenas científica. Se fosse, Galileu não teria sido obrigado a retratar-se publicamente e abjurar sua teoria nem recolhido a prisão domiciliar. Há algo mais que se quebra, além da ordem cósmica, cujas causas antecedem a esse período. Examinando o contexto histórico em que ocorreram
transformações tão radicais, percebemos que elas não se desligavam de outros acontecimentos igualmente marcantes, que se configuravam desde o século anterior: surgimento da burguesia; desenvolvimento da economia capitalista;

Revolução Comercial; renascimento das artes, das letras e da filosofia. Desse modo, nasce um novo indivíduo, confiante na razão e no poder de transformar o mundo. Uma explicação possível para justificar a mudança ocorrida é que a nova classe comerciante, constituída pelos burgueses, impôs-se pela valorização do trabalho em oposição ao ócio da aristocracia.

Além disso, inventos como a bússola, o papel, a imprensa e a máquina a vapor, o aperfeiçoamento dos navios e as descobertas tornavam-se necessários para o comércio e a indústria em expansão. O renascimento das ciências no século XVII não constituiu uma simples evolução do pensamento científico, mas uma verdadeira ruptura que implicou outra concepção de saber, por conta da novidade do método instituído.

Observação: Existe um artigo de Hans Blumeberg que discute justamente a guinada moderna.

 

(ARANHA, Maria Lúcia de A. e MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução a filosofia. 4. ed. São Paulo : Moderna, 2009. p.365)

Ideologia VII

 

Ricoeur: interpretação e ideologia


Em outra direção, Paul Ricoeur analisa os filósofos Marx, Nietzsche e Freud - "mestres da suspeita", como os denominou - ,pensadores que suspeitaram das ilusões da consciência, como vimos no capítulo anterior. Debruça-se então sobre a ideologia marxista, mas, segundo ele, para" cruzar Marx, sem segui-lo nem tampouco combatê-lo". Ao deparar-se com a noção marxista de ideologia como instrumento de dominação de uma classe sobre outra, critica-a porque o "homem da suspeita'' pensa estar isento da deformação ideológica que denuncia, como se dissesse: "a ideologia é o pensamento de meu adversário; é o pensamento
do outro. Ele não sabe, eu, porém, sei".
Portanto, Ricoeur não nega a ideologia, mas também não aceita separar ciência e ideologia como alternativas inconciliáveis, para aceitá-las como polos relacionados dialeticamente. Desse modo, o conceito de ideologia perde seu caráter depreciativo e assume um aspecto positivo de conhecimento possível.

Questionamento e conscientização


Como vimos, a ideologia está presente no cotidiano. Os produtos culturais, os bens e serviços à nossa disposição, as instituições, como escolas, fábricas, igrejas, imprensa falada e escrita etc., podem ser instrumentos de alienação quando nos passam a ilusão de que as desigualdades sociais, econômicas, políticas e culturais são naturais e que portanto não podemos mudá-las. Contudo, aqueles espaços em que a ideologia se manifesta são os mesmos que possibilitam aprender, refletir e mudar. É pelo esforço de conscientização, pela abertura ao questionamento que identificamos a ideologia.

(ARANHA, Maria Lúcia de A. e MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução a filosofia. 4. ed. São Paulo : Moderna, 2009. p.120-121)

Ideologia VI

 

Habermas: ciência e ideologia

Os filósofos de orientação marxista reinterpretaram o conceito de ideologia a partir das novas circunstâncias
da vida contemporânea. Entre eles, Jürgen Habermas relacionou ciência, técnica e ideologia para compreender como a consciência tecnocrática do mundo atual impõe-se em nome da economia e da eficiência. Na sociedade industrial avançada dos últimos cem anos é possível identificar o caráter ideológico
de decisões de administradores e especialistas, ainda quando elas são justificadas em termos técnicos aparentemente neutros e não ideológicos.
 

Habermas distingue o agir instrumental da ação comunicativa:


1. O agir instrumental diz respeito ao mundo do trabalho. Nesse setor, aprendemos a desenvolver habilidades baseadas em regras segundo o que Habermas chama de "agir racional-com-respeito-a-fins", ou seja, um saber empírico que visa a objetivos específicos e bem definidos, orientados para o sucesso e a eficácia da ação. Desse modo, na economia, o valor é o dinheiro na política, o poder; na técnica, a eficácia.


2. O agir comunicativo refere-se ao mundo da vida e baseia-se nas regras da sociabilidade. Nesse âmbito, as tarefas e habilidades repousam principalmente sobre as regras morais da interação. Pela comunicaçãolivre de dominação, as pessoas procuram chegar ao consenso, ao entendimento mútuo (diálogo), expressando sentimentos, expectativas, concordância e discordância e visando ao bem-estar de cada um. Trata-se do modo que deveria reger as relações em esferas como família, comunidades, organizações artísticas, científicas, culturais etc. Onde está o problema? O problema surge quando a racionalidade instrunental estende-se para outros domínios da vida pessoal nos quais deveria prevalecer a ação comunicativa. Assim explica Barbara Freitag:

A perversão ou patologia instaura-se quando, em lugar do entendimento, da argumentação, do respeito mútuo, os membros passam a agir instrumental ou estrategicamente, usando uns aos outros para fins técnicos, econômicos ou políticos. Seria o caso das famOias proletárias, denunciadas por Marx, que, por razões materiais, usam os filhos como inst rumentos· para aumentar a renda familiar. Há denúncias de casos no Terceiro Mundo, em que pais vendem seus filhos e filhas, com a finalidade do lucro, ou admitem e favorecem a prostituição de suas filhas e a exploração de seus filhos com fins financeiros. Outra forma de substituição da ação comunicativa pela instrumental é o caso de casais em que um usa o outro para avançar na carreira, sem que haja, fora esse objetivo instrumental, laços afetivos ou de entendimento entre os dois.
(FREITAG, Barbara.ltinerários de Antígona: a questão da moralidade. Campinas: Papirus, 1992. p. 240).

A intromissão da ação instrumental em outros domínios da vida empobrece a subjetividade humana e as relações afetivas. Não se avaliam as ações por serem justas ou injust as, mas se são eficazes; ou seja, os valores éticos e políticos são tratados do ponto de vista técnico, adequando-se aos fins propostos pelo sistema. As ações orientam-se pela competição, pelo individualismo, pela busca do rendimento. Desse modo, a ciência e a técnica  transformam-se em instrumento ideológico. A saída, porém, não está em recusar a ciência e a técnica, mas em recuperar o agir comunicativo naqueles espaços em que ele foi "colonizado" pelo agir instrumental. Do ponto de vista político isso significa que, para Habermas, a emancipação não mais depende da revolução, como propôs Marx, mas do aperfeiçoamento dos instrumentos de participação dentro da sociedade, respeitando-se o Estado de direito.

(ARANHA, Maria Lúcia de A. e MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução a filosofia. 4. ed. São Paulo : Moderna, 2009. p.126-127)

Ideologia V

 

Outras concepções marxistas de ideologia

Nos escritos de Marx, o conceito de ideologia manteve o sentido negativo de conhecimento distorcido da realidade social. Como sua obra A ideologia alemã foi publicada postumamente e permaneceu por muito tempo desconhecida, pensadores marxistas posteriores, como Lênin - gestor da Revolução Russa de 1917 - , alargaram a abrangência do conceito.

A ideologia adquiriu um sentido positivo como conjunto de ideias elaboradas pelo proletariado e que expressam seus interesses, em contraposição à visão de mundo da classe dominante. É assim que Lênin refere-se à "ideologia comunista''.

Vejamos outros significados para o conceito.

1. Gramsci e a hegemonia


O filósofo italiano Antonio Gramsci (1891-1937) reelaborou o marxismo ao desenvolver conceitos que evitaram
a orientação mecanicista daqueles que percebiam a classe dominada como joguete das forças produtivas. Sem negar a dominação, fortaleceu a concepção de um proletariado atuante na luta para assumir seus próprios valores, estratégia para evitar a submissão.

Para Gramsci, em um primeiro moment o a ideologia tem a função positiva de atuar como cimento da estrutura social. Quando incorporada ao senso comum, ajuda a estabelecer o consenso, conferindo hegemonia a uma determinada classe, que passará a ser dominante. Com o consentimento da classe subalterna, forma um sistema orgânico articulado por uma cultura comum, difundida pelas instituições a que já nos referimos anteriormente.

Portanto, as ideologias são orgânicas e historicamente necessárias quando "organizam as massas humanas, formam o terreno sobre o qual os homens se movimentam, adquirem consciência de sua posição, lutam etc:·. Sob esse aspecto, a ideologia tem "o significado mais alto de uma concepção de mundo que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas as manifestações de vida individuais e coletivas" e que tem por função conservar a unidade de todo bloco social.

Os conflitos posteriores entre burgueses e proletários exigem destes últimos a elaboração intelectual de seus próprios valores, uma vez que a ideologia vigente reflete os interesses da classe dominante, a burguesia. O proletariado precisa então de intelectuais orgânicos, assim chamados porque surgem "organicamente" a partir de suas próprias fileiras, contrapondo-se aos intelectuais tradicionais, a fim de constituírem coerentemente a concepção de mundo dos dominados. São esses intelectuais que dão ao proletariado "a consciência de sua missão histórica''. Nesse processo, Gramsci valoriza a atuação do partido, como organizador das massas.

(ARANHA, Maria Lúcia de A. e MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução a filosofia. 4. ed. São Paulo : Moderna, 2009. p.125-126)

Ideologia IV

 

A ideologia em ação

Com base no exposto, vamos examinar alguns espaços em que a ideologia é veiculada e onde ela poderá ser mais facilmente identificada e criticada.

1. As histórias em quadrinhos

Os quadrinhos são um fenômeno característico da cultura de massa. Como expressão da produção cultural contemporânea, além da função de entretenimento e lazer, exercem a função mítica e fabuladora típica das obras de ficção, além de preencherem funções estéticas, representantes que são de um nova linguagem artística. Como toda produção cultural, os quadrinhos encerram ambiguidade: ao mesmo tempo que servem à consciência, podem servir à alienação; tanto levam ao conhecimento como à escamoteação da realidade; tanto podem ser criativos como alienantes.

No início da década de 1970, dois chilenos, Ariel Dorfman e Armand Mattelart, defenderam a tese de que a leitura das histórias em quadrinhos não era tão inocente como se pensava. Da impiedosa crítica aos quadrinhos não escaparam desde os super-heróis até os aparentemente inofensivos personagens  de Walt Disney. Esses autores denunciaram a ideologia subjacente aos quadrinhos, nos quais as histórias escamoteiam os conflitos, transmitem uma visão deformada do trabalho e levam à passividade política.

Para eles, na maioria dos enredos a sociedade aparece como una, estática e harmônica, e a "ordem natural" do mundo é quebrada apenas pelos vilões, que, encarnando o mal, atentam contra o patrimônio (roubo de bancos, joias e caixas-fortes). A defesa da legalidade, dada e não questionada, é feita pelos "bons", com a morte dos "maus" ou com a integração desses à norma estabelecida. Resulta daí um maniqueísmo simplista, que reduz todo conflito à luta entre o bem e o mal, sem considerar quaisquer nuanças de uma sociedade em que as pessoas e os grupos tenham opiniões e interesses divergentes.

No entanto, a crítica aos quadrinhos e a outras manifestações culturais de massa, como cinema, novelas e programas de televisão, não pode ser simplista. Há produções que, mesmo sem perder a Capa do livro de Hergé, Tintin au Canga, de 1970. dimensão de divertimento e prazer, propiciam uma crítica da sociedade e de nós mesmos. Um exemplo clássico dos quadrinhos é o da Mafalda, de Quino, pseudônimo do argentino Joaquim Salvador Lavado (1932). Com humor- às vezes ácido e corrosivo –, questiona os costumes, a política, o conformismo e os preconceitos.

Os amiguinhos da consciente e crítica Mafalda representam os estereótipos da alienação, do excessivo pragmatismo e do egocentrismo, enquanto outros são contestadores e criativos. Nos Estados Unidos, Charles M. Schulz (1922-2000) criou histórias que revelam as dificuldades do relacionamento humano, com os personagens Charlie Brown, menino de bom coração, mas tímido, desastrado e um pouco deprimido; Snoopy, o cão beagle capaz de filosofar sobre a vida e que age como um adulto bem-sucedido; Lucy, mandona, egoísta e sarcástica; Linus, inseguro, com seu inseparável cobertorzinho.

Bill Watterson, outro quadrinista norte-americano, ao criar a dupla Calvin e seu tigre Haroldo, critica o mundo adulto. Não por acaso o nome do menino rebelde Calvin foi inspirado em Calvino, líder religioso do século XVI que rompeu com a Igreja Católica. Na versão original o nome do tigre é Hobbes, menção explícita ao filósofo do século XVII que tinha uma visão pessimista da natureza humana. No Brasil, artistas como Angeli, Ziraldo, Glauco, os irmãos Caruso, Fernando Gonsales e Laerte, entre outros, seja em tiras ou em charges, aproveitam temas e situações do imaginário nacional para expressar o "pensar brasileiró' e também o questionar.


2. Publicidade e midia


É verdade que a publicidade, por meio de competentes agências e suas criativas campanhas, divulga a variedade e a qualidade do que é produzido pelo mercado. Desse modo, o consumidor toma conhecimento dos produtos e pode fazer escolhas. No entanto, como vivemos em uma época de consumismo, as pessoas
são levadas a comprar muito mais do que necessitam, pressionadas por desejos artificialmente estimulados.

A publicidade não vende apenas produtos, mas também ideias. Com o produto são veiculados valores que influenciam a vida no trabalho e nas relações afetivas: "compramos" o desejo de "subir na vida", estilos de vida e convicções políticas e éticas. Nas eleições, o perfil de candidatos a cargos públicos é feito pela divulgação de suas qualidades Não abra a boca e projetos. Sem dúvida é importante que o eleitor os conheça para melhor fazer sua escolha. O risco é o marketing político, de modo convincente, criar uma imagem falsa do candidato para conseguir adesões.

Outro espaço possível de ação ideológica são meios de comunicação de massa, como jornais, revistas, rádio, tevê, internet. Pela internet, dispomos, além da troca de mensagens entre particulares, da difusão de versões on-line de jornais e de páginas pessoais (blogs) das mais diversas tendências políticas. Diante de um fato, certos aspectos são ressaltados e outros são descartados como menos importantes. Trata-se de um procedimento necessário, se considerarmos o volume de notícias disponíveis.

Às vezes, porém, fatos que deveriam ser divulgados são intencionalmente ocultados dos cidadãos. Por exemplo, no tempo da ditadura no Brasil, sobretudo no governo do presidente Médici, prevalecia a censura e não eram noticiadas greves e manifestações contra o governo, muito menos as prisões arbitrárias e ações de tortura. É bem verdade que nenhum relato é totalmente neutro.

Não se trata de distorção voluntária por má-fé, mas da inevitável interpretação que sempre fazemos de qualquer evento. esse sentido, a imprensa é formadora de opinião, o que representa algo positivo, desde que, numa sociedade plural e democrática, tenhamos acesso a diversos veículos de informação, que nos permita comparar a diversidade de posicionamentos e construir uma opinião crítica.

Quase nunca isso acontece, pois as revistas e os jornais alternativos não alcançam a mesma difusão da grande mídia e não suportam a concorrência. As distorções são evidentes quando se avalia o desempenho de governantes ou de grupos da sociedade civil. Frequentemente a veiculação da notícia é contaminada por orientações políticas. Por exemplo: ao noticiar uma greve de professores ou de operários, manchetes como "Milhares de crianças sem aula" ou "Milhões de dólares de prejuízo" fornecem a chave interpretativa da notícia. Elas induzem o leitor a desaprovar a greve, sem examinar se as reivindicações dos grevistas são justas ou não.

A diferença entre a informação ideológica e a não ideológica é que a primeira veicula interesses de grupos restritos, transforma-se em instrumento de poder e impede o pluralismo.] á a informação não ideológica é aberta à discussão e oferece espaços para debates e opiniões divergentes. Se existe o risco da mídia comprometida com o poder estabelecido, bem sabemos como a atuação da imprensa foi e tem sido importante no combate ao desmando político e à corrupção. Existem os jornalistas e repórteres investigativos, que, além de relatar e comentar fatos, trazem à luz aspectos que não são veiculados, apesar de importantes para a compreensão das notícias.

(ARANHA, Maria Lúcia de A. e MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução a filosofia. 4. ed. São Paulo : Moderna, 2009. p.120-121)

Ideologia III


Características da ideologia

É interessante observar que a ideologia não é urna mentira que a classe dominante inventa para subjugar a classe dominada, porque inclusive os que se beneficiam dos privilégios estão impregnados por ela, e também eles se convencem da verdade dessas ideias. Vamos então distinguir as características da ideologia.

a) Naturalização

A naturalização consiste em aceitar como naturais situações que na verdade resultam da ação humana e, como tais, são históricas. Por exemplo: afirmar que desde sempre existiram pobres e ricos, sendo impossível mudar esse estado de coisas. Assim diz o dramaturgo Bertolt Brecht na peça A exceção e a regra:
Nós vos pedimos com insistência:
Nunca digam -Isso é natural!
[ ... ]
A fim de que nada passe por ser imutável.
[ ... ]
Sob o familiar, descubram o josó ljto.
Sob o cotidiano, desvelem o inexp licável.
Que tudo que seja dito ser habitual,
Cause inquietação.
Na regra é preciso descobrir o abuso.
E sempre que o abuso for encontrado,
É preciso encontrar o remédio.2

b) Universalização


Outra característica da ideologia é a universalização, pela qual os valores da classe dominante são estendidos aos que a ela se submetem. É assim que a empregada doméstica "boazinha" não discute salário nem reclama se trabalha além do horário. Também os missionários que acompanhavam os colonizadores às terras conquistadas certamente não percebiam o caráter ideológico da sua ação ao imporem sua religião e moral ao povo dominado.

c) Abstração e aparecer social

A universalidade das ideias e dos valores resulta de uma abstração, ou seja, as representações ideológicas não se referem ao concreto, mas ao aparecer social. A sociedade "una e harmônica'' é portanto uma abstração, porque, ao analisarmos concretamente as relações sociais, descobrimos a divisão em classes e os conflitos de interesses. Por exemplo, é difícil contestar que "o trabalho dignifica''. É verdade, bem sabemos que o trabalho é condição de nossa humanização, mas essa afirmação é ideológica quando consideramos apenas a ideia de trabalho, independentemente da análise da situação concreta e histórico social em que de fato é realizado. Nesse caso, o que descobrimos pode ser exatamente o contrário: o trabalho como embrutecimento e condição de reificação ( coisificação) do ser humano. Basta saber que no tempo de Marx as indústrias inglesas contratavam trabalhadores para uma jornada extensa, sem direito a férias, auxílio para doença ou invalidez nem aposentadoria, além de arregimentarem crianças e mulheres como mão de obra mais barata. O rico se banqueteia enquanto os trabalhadores lutam (1923), afresco de José Clemente Orozco (1883-1947). Orozco participou do grupo dos muralistas mexicanos, com David Alfaro Siqueiros e Diego Rivera. O tema constante de seus trabalhos é a luta do povo e o ideal da revolução socialista.

d) Lacuna


A universalização e a abstração supõem uma lacuna ou a ocultação de algo que não pode ser explicitado, sob pena de desmascarar a ideologia. Por isso ela é ilusória, não no sentido de ser "falsa" ou "errada", mas por ser uma aparência que oculta a maneira pela qual a realidade social foi produzida. Sob o aparecer da ideologia existe a realidade concreta, que precisa ser descoberta pela análise da gênese do processo.

Ao dizer que "o salário paga o trabalho", podemos identificar uma lacuna quando, analisando a gênese do trabalho assalariado, descobrimos a mais-valia. Esse artifício, do qual deriva a exploração do trabalhador e sua alienação, oculta condições de vida diferentes para as pessoas na sociedade.

e) Inversão

A ideologia representa a realidade invertida, ou seja, o que seria a origem da realidade é posto como produto
e vice-versa: o que é efeito é tomado como causa. Exemplificando: segundo a ideologia burguesa, a desigualdade social resulta de diferenças individuais: os indivíduos são desiguais por natureza, e a desigualdade social é, portanto, inevitável. Para Marx, contudo, a divisão social do trabalho e das relações de produção é, de fato, a causa da desigualdade social. Se o filho do operário não melhora o padrão de vida, a explicação ideológica atribui o insucesso à incompetência, falta de força de vontade ou indisciplina. É verdade que não se pode desprezar as diferenças entre os indivíduos, mas pelo enfoque ideológico o sucesso depende apenas da competência pessoal, sem levar em conta as dificuldades decorrentes da divisão de classes. É como se imaginássemos uma corrida em que alguns começam bem na frente dos outros apenas
porque nasceram em berço privilegiado. Outra inversão própria da ideologia decorre da hierarquia entre o pensar e o agir, que instaura a dicotomia entre o trabalho intelectual e o manual. Sob esse esquema, uma classe "sabe pensar", enquanto a outra "não sabe pensar" e, portanto, só executa o que lhe mandam fazer.

(ARANHA, Maria Lúcia de A. e MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução a filosofia. 4. ed. São Paulo : Moderna, 2009. p.120-121)

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Filosofia


TEMA: O QUE É FILOSOFIA

1. INTRODUÇÃO

Quem é o filósofo? É alguém que pratica a filosofia, em outras palavras, que se serve da razão para tentar pensar o mundo e sua própria vida, a fim de se aproximar da sabedoria ou da felicidade. E isso se aprende na escola? Tem de ser aprendido, já que ninguém nasce filósofo e já que a filosofia é, antes de mais nada, um trabalho. Tanto melhor, se ele começar na escola. O importante é começar, e não parar mais. Nunca é cedo demais nem tarde demais para filosofar, dizia Epicuro [ ... ]. Digamos que só é tarde demais quando já não é possível pensar de modo algum. Pode acontecer. Mais um motivo para filosofar sem mais tardar.
   
 2. QUESTIONAMENTO/DESENVOLVIMENTO
    
 Nesse ponto, cabe a pergunta: afinal, só pensa e reflete quem filosofa? É claro que não, já que você pensa quando resolve uma equação matemática, reflete criticamente ao estudar história geral, pensa antes de decidir sobre o que fazer no fim de semana, pensa quando escreve um poema. Então, que tipo de "pensar" é esse, do filósofo? Não é melhor nem superior a todos os outros, mas sim diferente, porque se propõe a "pensar nossos pensamentos e ações". Dessa atitude resulta o que chamamos experiência filosófica. Ao criar ou explicitar conceitos, os filósofos delimitam os problemas que os intrigam e buscam o sentido desses pensamentos e ações, para não aceitarem certezas e soluções fáceis demais. Se olharmos com atenção esta tira do cartunista argentino Quino, constatamos que Mafalda faz uma interrogação filosófica sobre o sentido da existência, mas seu amigo Felipe quer se livrar o mais rapidamente dessa questão, ou seja, recusa-se a essa forma de pensar.

3. CONTEXTUALIZAÇÃO

Antonio Gramsci diz:

“não se pode pensar em nenhum homem que não seja também filósofo, que não pense, precisamente porque o pensar é próprio do homem como tal.”
· Filosofia de vida – Todos os dias nos deparamos como questões que nos fazem questionar a razão das coisas e sempre emitimos um juízo.
· Função da filosofia –  Qual é a função da filosofia? Como vou utilizar a filosofia na vida? Geralmente em um mundo pragmático  é possível perceber a função original da filosofia? Sempre utilizamos produtos do conhecimento humano, mas nem sempre nos perguntamos: qual foi o processo inicial de tudo isto? onde está sua origem? A filosofia nos leva a repensar nossas atitudes, a rever nossas práticas, coisas que geralmente passa despercebido. A filosofia é muito utilizada pelas religiões, pela elite tanto financeira como intelectual, pois ela é instrumento para conhecer e conhecimento é poder.
· Por isso mesmo, a filosofia pode ser "perigosa", por exemplo, quando desestabiliza o status quo  ao se confrontar com o poder. É o que afirma o historiador da filosofia François Châtelet:
“Desde que há Estado - da cidade grega às burocracias contemporâneas - , a ideia de verdade sempre se voltou, finalmente, para o lado dos poderes [ ... ]. Por conseguinte, a contribuição específica da filosofia que se coloca a serviço da liberdade, de todas as liberdades,é a de minar, pelas análises que ela opera e pelas ações que desencadeia, as instituições repressivas e simplificadoras: quer se trate da ciência, do ensino, da tradução, da pesquisa, da medicina, da família, da polícia, do fato carcerário, dos sistemas burocráticos, o que importa é fazer aparecer a máscara, deslocá-la, arrancá-la ...”

4. ATIVIDADES

· Quais são suas inquietações com relação a tudo que existe no mundo, as pessoas, sua vida?
· Produzir um texto com o seguinte tema: A IMPORTÂNCIA DO ATO DE PERGUNTAR. 30 linhas














Ideologia II


Ideologia: sentido restrito (Aula 2 )

O termo ideologia foi criado no século XIX por Destutt de Tracy, filósofo e político francês, para designar uma "ciência das ideias". Com ela o autor pretendia compreender a formação das ideias numa sociedade por meio de um método semelhante ao das ciências da natureza. Seus seguidores foram chamados ideólogos por Napoleão Bonaparte, dando ao termo uma conotação pejorativa, já que rejeitava as posições políticas daquele grupo. Consultar o capítulo 6, "Trabalho, alienação e consumo".

Conceito marxista de ideologia


Para compreendermos o conceito marxista de ideologia, é preciso rever o que é alienação. Para Marx, a alienação manifesta-se na vida do operário quando o produto do seu trabalho deixa de lhe pertencer. Ao vender a sua força de trabalho, não mais decide sobre o salário, o horário e o ritmo de trabalho; e por ser comandado de fora, perde o centro de si mesmo, tornando-se "alheio'', "estranho" a si próprio, portanto alienado. Esse estado de coisas é típico de sociedades divididas em classes, em que predomina a separação entre o trabalho manual e o intelectual, nas quais os trabalhadores perdem a autonomia e se sujeitam à exploração. Por que o operário não reage a essa situação? Marx explica que a ideologia impede a tomada de consciência da alienação. Assim, a coesão social é mantida sem o recurso à violência física. Embora o conceito de ideologia já estivesse subentendido em suas primeiras obras, Marx introduziu o termo pela primeira vez em A ideologia alemã, na qual critica os filósofos hegelianos, cujas reflexões partiam de ideias. De acordo com sua concepção materialista da história, deve-se iniciar pelo exame do modo de produção capitalista para só então analisar como são produzidas as ideias nessa realidade concreta. Em que consiste portanto a ideologia segundo Marx? Ideologia é o conjunto de representações e ideias, bem como de normas de conduta, por meio das quais o indivíduo é levado a pensar, sentir e agir da maneira que convém à classe que detém o poder. Essa consciência da realidade torna-se uma distorção dela quando camufla os conflitos existentes no seio da sociedade, ao apresentá-la una e harmônica, como se todos os indivíduos partilhassem dos mesmos interesses e ideais.
Portanto, a ideologia:
  1. constitui um corpo sistemático de representações que nos "ensinam" a pensar e de normas que nos "ensinam" a agir;
  2. determina a relação entre os indivíduos e as condições de existência deles, adaptando-os às tarefas prefixadas pela sociedade;
  3. camufla as diferenças de classe e os conflitos sociais, ora concebendo a sociedade como "una e harmônica", ora justificando as diferenças existentes;
  4. garante a coesão social e a aceitação sem criticas das tarefas mais penosas e pouco recompensadoras, em nome da "vontade de Deus", do "dever moral" ou simplesmente como decorrência da "ordem natural das coisas";
  5. mantém a dominação de urna classe sobre outra.
     (ARANHA, Maria Lúcia de A. e MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução a filosofia. 4. ed. São Paulo : Moderna, 2009. p.120-121)

Ideologia


Sobre ideologia (Aula-1   3ª unidade)
O que é ideologia?
Como a ideologia determina o coportamento das pessoas?
Quais são as caracerísticas da ideologia?
Conceito geral de ideologia

Você já prestou atenção na letrada canção Ideologia, de Cazuza e Roberto Frejat? Diante de uma vida sem
sentido,
um jovem assiste a tudo "em cima do muro'' e sequer conhece bem a si mesmo. Lamenta ter perdido o sonho de mudar o mundo e por isso, no refrão, brada por uma ideologia: "Eu quero uma pra viver!". O que transparece nesse apelo é o desejo de valorizar sua vida com significados outros que não dependam de modismos e concepções alheias. Para tanto, ele precisa pensar por si mesmo e adquirir autonomia de ação. Esse exemplo nos dá o sentido mais geral e positivo do conceito de ideologia, como conjunto de ideias, crenças ou opiniões sobre algum ponto sujeito a discussão. Falamos então da ideologia de um pensador, do corpo sistemático de suas ideias, do seu posicionamento interpretativo diante de certos fatos. É assim que distinguimos ideologia liberal de ideologia socialista, as duas principais visões políticas, sociais e econômicas do nosso tempo. Esse sentido de ideologia também serve para designar a teoria pedagógica que orienta a prática de uma escola ou a ideologia de uma religião que determina as regras de conduta dos fiéis. Quando lemos um livro podemos perceber aspectos da ideologia nele subjacente e que denota a visão de mundo de seu autor. E assim por diante.
(ARANHA, Maria Lúcia de A. e MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução a filosofia. 4. ed. São Paulo : Moderna, 2009. p.120)

quarta-feira, 23 de julho de 2014

o desafio da filosofia



O principal desafio para a filosofia na atualidade, é despertar nos jovens o interesse pelo ser crítico em uma sociedade onde a diferença se apresenta sempre como ameaça.

terça-feira, 10 de junho de 2014

AULAS FILOSOFIA



 
Capítulo I
Ao   iniciarmos   os   estudos   sobre   filosofia, iremos apresentar a seguir um breve panorama sobre a história da filosofia, história   essa   que   influencia   a   história   humana decisivamente.
                                                                                
A história da filosofia pode ser dividida em sete períodos:
1º. Filosofia Antiga: Que é dividida em mais quatro períodos, Período pré-socrático ou Cosmológico, período socrático ou antropológico, período sistemático e período helenístico ou Greco-romano. No período pré-socrático ou cosmológico, há   uma   preocupação em compreender   a origem do cosmo e os fenômenos da natureza. Este período se estende do final do século VI aC.  Até o final do século V a.C. No período socrático ou antropológico, investigam-se as questões humanas, tais como a ética, os comportamentos e conhecimentos humanos. Este período se estende do final do século V a.C. Ao final do século IV a.C.
No período sistemático, procura-se centrar principalmente a figura de Aristóteles por sistematizar tudo o que fora pensado até então. Este período se estende do final do século IV a.C. Até o final do século III a.C. No período helenístico ou greco-romano, acompanham-se as transformações da cultura grega quando esta (Grécia) passa a fazer parte do Império romano e, mais tarde, surge o cristianismo que influencia no desenvolvimento posterior.  Este período se estende do final do século III a.C. Até o século VI depois de Cristo.
2º.   Filosofia   Patrística:  Na   filosofia   patrística existe um esforço para conciliar o cristianismo com o pensamento filosófico Grego-latino. É um período onde a preocupação principal  é com as questões religiosas tais como a criação do mundo, o pecado original,   a   ressurreição   dos   mortos,   avançando assim para temas mais complexos de caráter moral como consciência, livre-arbítrio e as relações entre fé e razão. Este período se estende do século I até o século VII d.C.
3º.   Filosofia  medieval   ou   escolástica:  Preocupa-se com   os   mesmos   temas   da   patrística,   foi   fortemente influenciada pelos pensamentos de Platão e Aristóteles, abrangendo   também   pensadores   árabes,   judeus   e europeus. Este período se estende entre o século VIII e o século XIV.
Platão e Aristóteles
4º.  Filosofia da Renascença:  É caracterizada pela  recuperação de obras de autores grego-latinos que julgavam estarem perdidas. Entre estas obras estavam alguns escritos de Platão e Aristóteles.   São   recuperadas   preocupações   políticas   e   da   centralidade   do   homem   no pensamento filosófico, o foco deixa de ser centrado em Deus e passa ser centrado no homem. Este período se estende entre o século XIV e o século XVI.
5º.  Filosofia Moderna: A  filosofia moderna valoriza principalmente a reflexão como ponto de partida do raciocínio filosófico. Na filosofia moderna, tudo o que desejamos conhecer pode ser transformado numa idéia clara, formulada pelo intelecto. A percepção de realidade, possíveis de serem conhecidas e transformadas pelos seres humanos dá origem à ciência. Este período se estende do século XVII até o século XVIII.
6º. Filosofia da Ilustração ou Iluminismo: Tem como objetivo levar aos seres humanos a “luz” da  razão humana que é manifestada em  todas as  formas de conhecimento  racional.  Sendo assim, através da razão o ser humano atingiria liberdade, as luzes da razão seriam capazes de promoverem o aprimoramento em várias partes do ser  humano,  entre elas,  a moral,  social, técnica,   política,   artística,   ou   seja,   promoveriam  a   civilização.  Este   período   se   estende   de meados do século XVIII ao começo do século XIX.
7º.   Filosofia   Contemporânea:  A   filosofia contemporânea volta-se para o homem vivendo em sociedade.   Devemos   lembrar-nos   de   uma sociedade que nos últimos 200 anos sofreu uma série de mudanças radicais como por exemplo a ascensão   da   burguesia   ao   poder, aos   avanços técnico-científicos, duas Guerras Mundiais,   pelas ameaças de extinção da vida na Terra etc.  Este período se estende de meados do século XIX aos dias atuais.
Linha do Tempo – Filosofia Antiga



Capitulo II

A ORIGEM DA FILOSOFIA
1.       INTRODUÇÃO

A palavra filosofia

A palavra filosofia é grega. É composta por duas outras: philo e sophia. Philo deriva-se de philia, que significa amizade, amor fraterno, respeito entre os iguais. Sophia quer dizer sabedoria e dela vem a palavra sophos, sábio. Filosofia significa, portanto, amizade pela sabedoria, amor e respeito pelo saber. Filósofo: o que ama a sabedoria, tem amizade pelo saber, deseja saber.
Assim, filosofia indica um estado de espírito, o da pessoa que ama, isto é, deseja o conhecimento, o estima, o procura e o respeita. Atribui-se ao filósofo grego Pitágoras de Samos (que viveu no século V antes de Cristo) a invenção da palavra filosofia. Pitágoras teria afirmado que a sabedoria plena e completa pertence aos deuses, mas que os homens podem desejá-la ou amá-la, tornando-se filósofos.
Dizia Pitágoras que três tipos de pessoas compareciam aos jogos olímpicos (afesta mais importante da Grécia): as que iam para comerciar durante os jogos, ali estando apenas para servir aos seus próprios interesses e sem preocupação com as disputas e os torneios; as que iam para competir, isto é, os atletas e artistas (pois, durante os jogos também havia competições artísticas: dança, poesia, música, teatro); e as que iam para contemplar os jogos e torneios, para avaliar o desempenho e julgar o valor dos que ali se apresentavam. Esse terceiro tipo de pessoa, dizia Pitágoras, é como o filósofo.
Com isso, Pitágoras queria dizer que o filósofo não é movido por interesses comerciais - não coloca o saber como propriedade sua, como uma coisa para ser comprada e vendida no mercado; também não é movido pelo desejo de competir - não faz das idéias e dos conhecimentos uma habilidade para vencer competidores ou “atletas intelectuais”; mas é movido pelo desejo de observar, contemplar, julgar e avaliar as coisas, as ações, a vida: em resumo, pelo desejo de saber. A verdade não pertence a ninguém, ela é o que buscamos e que está diante de nós para ser contemplada e vista, se tivermos olhos (do espírito) para vê-la.

2.       DESENVOLVIMENTO

A Filosofia é grega

A Filosofia, entendida como aspiração ao conhecimento racional, lógico e sistemático da realidade natural e humana, da origem e causas do mundo e de suas transformações, da origem e causas das ações humanas e do próprio pensamento, é um fato tipicamente grego.
Evidentemente, isso não quer dizer, de modo algum, que outros povos, tão antigos quanto os gregos, como os chineses, os hindus, os japoneses, os árabes, os persas, os hebreus, os africanos ou os índios da América não possuam sabedoria, pois possuíam e possuem. Também não quer dizer que todos esses povos não tivessem desenvolvido o pensamento e formas de conhecimento da Natureza e dos seres humanos, pois desenvolveram e desenvolvem.
Quando se diz que a Filosofia é um fato grego, o que se quer dizer é que ela possui certas características, apresenta certas formas de pensar e de exprimir os pensamentos, estabelece certas concepções sobre o que sejam a realidade, o pensamento, a ação, as técnicas, que são completamente diferentes das características desenvolvidas por outros povos e outras culturas. Vejamos um exemplo. Os chineses desenvolveram um pensamento muito profundo sobre a existência de coisas, seres e ações contrários ou opostos, que formam a realidade. Deram às oposições o nome de dois princípios: Yin e Yang. Yin é o princípio feminino passivo na Natureza, representado pela escuridão, o frio e a umidade; Yang é o princípio masculino ativo na Natureza, representado pela luz, o calor e o seco. Os dois princípios se combinam e formam todas as coisas, que, por isso, são feitas de contrários ou de oposições.
O mundo, portanto, é feito da atividade masculina e da passividade feminina. Tomemos agora um filósofo grego, por exemplo, o próprio Pitágoras. Que diz ele? Que a Natureza é feita de um sistema de relações ou de proporções matemáticas produzidas a partir da unidade (o número 1 e o ponto), da oposição entre os números pares e ímpares, e da combinação entre as superfícies e os volumes (as figuras geométricas), de tal modo que essas proporções e combinações aparecem para nossos órgãos dos sentidos sob a forma dequalidades contrárias: quente-frio, seco-úmido, áspero-liso, claro-escuro, grande pequeno, doce-amargo, duro-mole, etc. Para Pitágoras, o pensamento alcança a realidade em sua estrutura matemática, enquanto nossos sentidos ou nossa percepção alcançam o modo como a estrutura matemática da Natureza aparece para nós, isto é, sob a forma de qualidades opostas.
Qual a diferença entre o pensamento chinês e o do filósofo grego? O pensamento chinês toma duas características (masculino e feminino) existentes em alguns seres (os animais e os humanos) e considera que o Universo inteiro éfeito da oposição entre qualidades atribuídas a dois sexos diferentes, de sorte que o mundo é organizado pelo princípio da sexualidade animal ou humana. O pensamento de Pitágoras apanha a Natureza numa generalidade muito mais ampla do que a sexualidade própria a alguns seres da Natureza, e faz distinção entre as qualidades sensoriais que nos aparecem e a estrutura invisível da Natureza, que, para ele, é de tipo matemático e alcançada apenas pelo intelecto, ou inteligência. São diferenças desse tipo, além de muitas outras, que nos levam a dizer que existe uma sabedoria chinesa, uma sabedoria hindu, uma sabedoria dos índios, mas não há filosofia chinesa, filosofia hindu ou filosofia indígena. Em outras palavras, Filosofia é um modo de pensar e exprimir os pensamentos que surgiu especificamente com os gregos e que, por razões históricas e políticas, tornou-se, depois, o modo de pensar e de se exprimir predominante da chamada cultura européia ocidental da qual, em decorrência da colonização portuguesa do Brasil, nós também participamos.
Através da Filosofia, os gregos instituíram para o Ocidente europeu as bases e os princípios fundamentais do que chamamos razão, racionalidade, ciência, ética, política, técnica, arte. Aliás, basta observarmos que palavras como lógica, técnica, ética, política, monarquia, anarquia, democracia, física, diálogo, biologia, cronologia, gênese, genealogia, cirurgia, ortopedia, pedagogia, farmácia, entre muitas outras, são palavras gregas, para percebermos a influência decisiva e predominante da Filosofia grega sobre a formação do pensamento e das instituições das sociedades européias ocidentais. É por isso que, em decorrência do predomínio da economia capitalista criada pelo Ocidente e que impõe um certo tipo de desenvolvimento das ciências e das técnicas, falamos, por exemplo, em “ocidentalização dos chineses”, “ocidentalização dos árabes”, etc. Com isso queremos significar que modos de pensar e de agir, criados no Ocidente pela Filosofia grega, foram incorporados até mesmo por culturas e sociedades muito diferentes daquela onde nasceu a Filosofia.
É pelo mesmo motivo que falamos em “orientalismos” e “orientalistas” para indicar pessoas que buscam no budismo, no confucionismo, no Yin e no Yang, nos mantras, nas pirâmides, nas auras, nas pedras e cristais maneiras de pensar e de explicar a realidade, a Natureza, a vida e as ações humanas que não são próprias ou específicas do Ocidente, isto é, são diferentes do padrão de pensamento e de explicação que foram criados pelos gregos a partir do século VII antes de Cristo, época em que nasce a Filosofia.

3.       CONTEXTUALIZAÇÃO

O legado da Filosofia grega para o Ocidente europeu

Por causa da colonização européia das Américas, nós também fazemos parte - ainda que de modo inferiorizado e colonizado - do Ocidente europeu e assim também somos herdeiros do legado que a Filosofia grega deixou para o pensamento ocidental europeu. Desse legado, podemos destacar como principais contribuições as seguintes: A ideia de que a Natureza opera obedecendo a leis e princípios necessários e universais, isto é, os mesmos em toda a parte e em todos os tempos. Assim, por exemplo, graças aos gregos, no século XVII da nossa era, o filósofo inglês Isaac Newton estabeleceu a lei da gravitação universal de todos os corpos da Natureza. A lei da gravitação afirma que todo corpo, quando sofre a ação de um outro, produz uma reação igual e contrária, que pode ser calculada usando como elementos do cálculo a massa do corpo afetado, a velocidade e o tempo com que a ação e a reação se deram.
Essa lei é necessária, isto é, nenhum corpo do Universo escapa dela e pode funcionar de outra maneira que não desta; e esta lei é universal , isto é, válida para todos os corpos em todos os tempos e lugares. Um outro exemplo: as leis geométricas do triângulo ou do círculo, conforme demonstraram os filósofos gregos, são universais e necessárias, isto é, seja em Tóquio em 1993, em Copenhague em 1970, em Lisboa em 1810, em São Paulo em 1792, em Moçambique em 1661, ou em Nova York em 1975, as leis do triângulo ou do círculo são necessariamente as mesmas. A idéia de que as leis necessárias e universais da Natureza podem ser plenamente conhecidas pelo nosso pensamento, isto é, não são conhecimentos misteriosos e secretos, que precisariam ser revelados por divindades, mas são conhecimentos que o pensamento humano, por sua própria força e capacidade, pode alcançar.
A idéia de que nosso pensamento também opera obedecendo a leis, regras e normas universais e necessárias, segundo as quais podemos distinguir o verdadeiro do falso. Em outras palavras, a idéia de que o nosso pensamento é lógico ou segue leis lógicas de funcionamento. Nosso pensamento diferencia uma afirmação de uma negação porque, na afirmação, atribuímos alguma coisa a outra coisa (quando afirmamos que “Sócrates é um ser humano ”, atribuímos humanidade a Sócrates) e, na negação, retiramos alguma coisa de outra (quando dizemos “este caderno não é verde”, estamos retirando do caderno a cor verde).
Nosso pensamento distingue quando uma afirmação é verdadeira ou falsa. Se alguém apresentar o seguinte raciocínio: “Todos os homens são mortais. Sócrates é homem. Logo, Sócrates é mortal ”, diremos que a afirmação “Sócrates é mortal” é verdadeira, porque foi concluída de outras afirmações que já sabemos serem verdadeiras. A idéia de que as práticas humanas, isto é, a ação moral, a política, as técnicas e as artes dependem da vontade livre, da deliberação e da discussão, da nossa escolha passional (ou emocional) ou racional, de nossas preferências, segundo certos valores e padrões, que foram estabelecidos pelos próprios seres humanos e não por imposições misteriosas e incompreensíveis, que lhes teriam sido feitas por forças secretas, invisíveis, sejam elas divinas ou naturais, e impossíveis de serem conhecidas. A idéia de que os acontecimentos naturais e humanos são necessários, porque obedecem a leis naturais ou da natureza humana, mas também podem ser contingentes ou acidentais, quando dependem das escolhas e deliberações dos homens, em condições determinadas.
Dessa forma, uma pedra cai porque seu peso, por uma lei natural, exige que ela caia natural e necessariamente; um ser humano anda porque as leis anatômicas e fisiológicas que regem o seu corpo fazem com que ele tenha os meios necessários para a locomoção. No entanto, se uma pedra, ao cair, atingir a cabeça de um passante, esse acontecimento é contingente ou acidental. Por quê? Porque, se o passante não estivesse andando por ali naquela hora, a pedra não o atingiria. Assim, a queda da pedra é necessária e o andar de um ser humano é necessário, mas que uma pedra caia sobre minha cabeça quando ando é inteiramente contingente ou acidental. Todavia, é muito diferente a situação das ações humanas. É verdade que é por uma necessidade natural ou por uma lei da Natureza que ando. Mas é por deliberação voluntária que ando para ir à escola em vez de andar para ir ao cinema, por exemplo. É verdade que é por uma lei necessária da Natureza que os corpos pesados caem, mas é por uma deliberação humana e por uma escolha voluntária que fabrico uma bomba, a coloco num avião e a faço despencar sobre Hiroshima.
Um dos legados mais importantes da Filosofia grega é, portanto, essa diferença entre o necessário e o contingente, pois ela nos permite evitar o fatalismo - “tudo é necessário, temos que nos conformar e nos resignar ” -, mas também evitar a ilusão de que podemos tudo quanto quisermos, se alguma força extranatural ou sobrenatural nos ajudar, pois a Natureza segue leis necessárias que podemos conhecer e nem tudo é possível por mais que o queiramos. A idéia de que os seres humanos, por Natureza, aspiram ao conhecimento  verdadeiro, à felicidade, à justiça, isto é, que os seres humanos não vivem nem agem cegamente, mas criam valores pelo quais dão sentido às suas vidas e às suas ações.

  1. ATIVIDADE

A Filosofia surge, portanto, quando alguns gregos, admirados e espantados com a realidade, insatisfeitos com as explicações que a tradição lhes dera, começaram a fazer perguntas e buscar respostas para elas, demonstrando que o mundo e os seres humanos, os acontecimentos e as coisas da Natureza, os acontecimentos e as ações humanas podem ser conhecidos pela razão humana, e que a própria razão é capaz de conhecer-se a si mesma.
Em suma, a Filosofia surge quando se descobriu que a verdade do mundo e dos humanos não era algo secreto e misterioso, que precisasse ser revelado por divindades a alguns escolhidos, mas que, ao contrário, podia ser conhecida por todos, através da razão, que é a mesma em todos; quando se descobriu que tal conhecimento depende do uso correto da razão ou do pensamento e que, além da verdade poder ser conhecida por todos, podia, pelo mesmo motivo, ser ensinada ou transmitida a todos.
  • O aluno deve buscar desenvolver um texto a partir da observação do mundo, trazer e discutir na próxima aula.

CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. SP ,Ed ática,2000

Fatores que desencadearam o surgimento da filosofia

Segundo   (MORAES,   José  Geraldo   Vinci   de      Caminhos   das  Civilizações da História Integrada: Geral e Brasil: São Paulo: Atual, 1990, p. 52.) uma série de fatores contribuíram para o surgimento da filosofia na Grécia Antiga, e ainda seguindo o que Moraes escreveu em seu livro, segue abaixo os principais fatores desse surgimento.
  As viagens marítimas  – que permitiram aos gregos descobrir  que os  locais que os mitos diziam  habitados   por   deuses,   titãs   e heróis  eram,   na verdade, habitados por outros seres humanos; e que as regiões dos mares que os mitos diziam habitadas por monstros   e   seres   fabulosos   não   possuíam   nem monstros nem seres fabulosos. As viagens produziram o desencantamento ou a desmistificação do mundo, que passou, assim, a exigir uma explicação sobre sua origem, explicação que o mito já não podia oferecer;
  A invenção do calendário – que e uma forma de calcular o tempo segundo as estações do ano, as horas do dia, os fatos importantes que se repetem, revelando, com isso, uma capacidade de abstração nova, ou uma percepção do tempo como algo natural e não como um poder divino incompreensível;
  A  invenção da moeda  – que permitiu uma  forma de  troca que não se realiza através das coisas concretas ou dos objetos concretos trocados por semelhança, mas uma troca abstrata,  uma troca feita pelo calculo do valor semelhante das coisas diferentes, revelando, portanto, uma nova capacidade de abstração e de generalização;
  O  surgimento  da   vida  urbana     com  predomínio   do   comércio   e   do   artesanato,   dando desenvolvimento a técnicas de fabricação e de troca, e diminuindo o prestígio das famílias da aristocracia proprietária de terras, por quem e para quem os mitos foram criados;
  A  invenção da  escrita alfabética    com  a criação do calendário e a da moeda revela-se o crescimento da capacidade de abstração e de generalização, uma vez que a escrita alfabética ou fonética, diferentemente de outras escritas – como, por exemplo,  os hieróglifos dos egípcios ou os ideogramas dos chineses;
        
• A invenção da política – O surgimento de um espaço público que faz aparecer um novo tipo de palavra ou de discurso, diferente daquele que era proferido pelo mito. A política estimula um pensamento e um discurso que não procuram ser formulados por seitas secretas dos iniciados em mistérios sagrados, mas que procuram, ao contrário, ser públicos, ensinados, transmitidos, comunicados e discutidos.
PARA DESENVOLVER O OLHAR ATENTO SOBRE O MUNDO
“Nada pode surgir  do nada”,  dizia Parmênides.  “e nada que existe pode se  transformar  em nada.” Todos ou quase  todos,  conhecemos a seguinte  frase: “eu só acredito vendo”.  Porém, para Parmênides ele não acreditava nem quando via.  Ele acreditava que os sentidos forneciam uma visão enganosa do mundo; que é uma visão que não está de acordo com o que nos diz a visão. Parmênides acreditava que como filósofo, ele tinha o dever de descobrir todas as formas de ‘ilusão dos sentidos’.Essa  forte crença na  razão humana é  chamada de  racionalismo.  Um  racionalista é aquele que tem grande confiança ma razão humana enquanto fonte de conhecimento do mundo.
Adaptado de: GAARDER, N Jostein, O mundo de Sofia. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
 
Capitulo III

CONSCIÊNCIA MÍTICA   
1.      INTRODUÇÃO

Da consciência mítica a consciência filosófica

A filosofia nasceu realizando uma transformação gradual sobre os antigos mitos gregos ou nasceu por uma ruptura radical com os mitos?
Mas, o que é um mito?
                Um mito é uma narrativa sobre a origem de alguma coisa (origem dos astros, da Terra, dos homens, das plantas, dos animais, do fogo, da água, dos ventos, do bem e do mal, da saúde e da doença, da morte, dos instrumentos de trabalho, das raças, das guerras, do poder, etc.).
                A palavra mito vem do grego, e deriva de dois verbos: do verbo (contar, narrar, falar alguma coisa para os outros) e do verbo (conversar, contar, anunciar, nomear, designar). Para os gregos, mito é um discurso pronunciado ou proferido para ouvintes que recebem como verdadeira a narrativa, porque confiam naquele que narra; é uma narrativa feita em público, baseada, portanto, na autoridade e confiabilidade da pessoa do narrador. E essa autoridade vem do fato de que ele ou testemunhou diretamente o que está narrando ou recebeu a narrativa de quem testemunhou os acontecimentos narrados.
                Quem narra o mito? O poeta-rapsodo. Quem é ele? Por que tem autoridade? Acredita-se que o poeta é um escolhido dos deuses, que lhe mostram os acontecimentos passados e permitem que ele veja a origem de todos os seres e de todas as coisas para que possa transmiti-la aos ouvintes. Sua palavra – o mito – é sagrada porque vem de uma revelação divina. O mito é, pois, incontestável e inquestionável.
Como o mito narra a origem do mundo e de tudo o que nele existe?

2.      ALEGORIA DA CAVERNA

SÓCRATES – Figura-te agora o estado da natureza humana, em relação à ciência e à ignorância, sob a forma alegórica que passo a fazer. Imagina os homens encerrados em morada subterrânea e cavernosa que dá entrada livre à luz em toda extensão. Aí, desde a infância, têm os homens o pescoço e as pernas presos de modo que permanecem imóveis e só vêem os objetos que lhes estão diante. Presos pelas cadeias, não podem voltar o rosto. Atrás deles, a certa distância e altura, um fogo cuja luz os alumia; entre o fogo e os cativos imagina um caminho escarpado, ao longo do qual um pequeno muro parecido com os tabiques que os pelotiqueiros põem entre si e os espectadores para ocultar-lhes as molas dos bonecos maravilhosos que lhes exibem.
GLAUCO - Imagino tudo isso.
SÓCRATES - Supõe ainda homens que passam ao longo deste muro, com figuras e objetos que se elevam acima dele, figuras de homens e animais de toda a espécie, talhados em pedra ou madeira. Entre os que carregam tais objetos, uns se entretêm em conversa, outros guardam em silêncio.
GLAUCO - Similar quadro e não menos singulares cativos!
SÓCRATES - Pois são nossa imagem perfeita. Mas, dize-me: assim colocados, poderão ver de si mesmos e de seus companheiros algo mais que as sombras projetadas, à claridade do fogo, na parede que lhes fica fronteira?
GLAUCO - Não, uma vez que são forçados a ter imóveis a cabeça durante toda a vida.
SÓCRATES - E dos objetos que lhes ficam por detrás, poderão ver outra coisa que não as sombras?
GLAUCO - Não.
SÓCRATES - Ora, supondo-se que pudessem conversar, não te parece que, ao falar das sombras que vêem, lhes dariam os nomes que elas representam?
GLAUCO - Sem dúvida.
SÓRATES - E, se, no fundo da caverna, um eco lhes repetisse as palavras dos que passam, não julgariam certo que os sons fossem articulados pelas sombras dos objetos?
GLAUCO - Claro que sim.
SÓCRATES - Em suma, não creriam que houvesse nada de real e verdadeiro fora das figuras que desfilaram.
GLAUCO - Necessariamente.
SÓCRATES - Vejamos agora o que aconteceria, se se livrassem a um tempo das cadeias e do erro em que laboravam. Imaginemos um destes cativos desatado, obrigado a levantar-se de repente, a volver a cabeça, a andar, a olhar firmemente para a luz. Não poderia fazer tudo isso sem grande pena; a luz, sobre ser-lhe dolorosa, o deslumbraria, impedindo-lhe de discernir os objetos cuja sombra antes via.
Que te parece agora que ele responderia a quem lhe dissesse que até então só havia visto fantasmas, porém que agora, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, via com mais perfeição? Supõe agora que, apontando-lhe alguém as figuras que lhe desfilavam ante os olhos, o obrigasse a dizer o que eram. Não te parece que, na sua grande confusão, se persuadiria de que o que antes via era mais real e verdadeiro que os objetos ora contemplados?
GLAUCO - Sem dúvida nenhuma.
SÓCRATES - Obrigado a fitar o fogo, não desviaria os olhos doloridos para as sombras que poderia ver sem dor? Não as consideraria realmente mais visíveis que os objetos ora mostrados?
GLAUCO - Certamente.
SÓCRATES - Se o tirassem depois dali, fazendo-o subir pelo caminho áspero e escarpado, para só o liberar quando estivesse lá fora, à plena luz do sol, não é de crer que daria gritos lamentosos e brados de cólera? Chegando à luz do dia, olhos deslumbrados pelo esplendor ambiente, ser-lhe ia possível discernir os objetos que o comum dos homens tem por serem reais?
GLAUCO - A princípio nada veria.
SÓCRATES - Precisaria de algum tempo para se afazer à claridade da região superior. Primeiramente, só discerniria bem as sombras, depois, as imagens dos homens e outros seres refletidos nas águas; finalmente erguendo os olhos para a lua e as estrelas, contemplaria mais facilmente os astros da noite que o pleno resplendor do dia.
GLAUCO - Não há dúvida.
SÓCRATES - Mas, ao cabo de tudo, estaria, decerto, em estado de ver o próprio sol, primeiro refletido na água e nos outros objetos, depois visto em si mesmo e no seu próprio lugar, tal qual é.
GLAUCO - Fora de dúvida.
SÓCRATES - Refletindo depois sobre a natureza deste astro, compreenderia que é o que produz as estações e o ano, o que tudo governa no mundo visível e, de certo modo, a causa de tudo o que ele e seus companheiros viam na caverna.

GLAUCO - É claro que gradualmente chegaria a todas essas conclusões.
SÓCRATES - Recordando-se então de sua primeira morada, de seus companheiros de escravidão e da idéia que lá se tinha da sabedoria, não se daria os parabéns pela mudança sofrida, lamentando ao mesmo tempo a sorte dos que lá ficaram?
GLAUCO - Evidentemente.
SÓCRATES - Se na caverna houvesse elogios, honras e recompensas para quem melhor e mais prontamente distinguisse a sombra dos objetos, que se recordasse com mais precisão dos que precediam, seguiam ou marchavam juntos, sendo, por isso mesmo, o mais hábil em lhes predizer a aparição, cuidas que o homem de que falamos tivesse inveja dos que no cativeiro eram os mais poderosos e honrados? Não preferiria mil vezes, como o herói de Homero, levar a vida de um pobre lavrador e sofrer tudo no mundo a voltar às primeiras ilusões e viver a vida que antes vivia?
GLAUCO - Não há dúvida de que suportaria toda a espécie de sofrimentos de preferência a viver da maneira antiga.
SÓCRATES - Atenção ainda para este ponto. Supõe que nosso homem volte ainda para a caverna e vá assentar-se em seu primitivo lugar. Nesta passagem súbita da pura luz à obscuridade, não lhe ficariam os olhos como submersos em trevas?
GLAUCO - Certamente.
SÓCRATES - Se, enquanto tivesse a vista confusa -- porque bastante tempo se passaria antes que os olhos se afizessem de novo à obscuridade -- tivesse ele de dar opinião sobre as sombras e a este respeito entrasse em discussão com os companheiros ainda presos em cadeias, não é certo que os faria rir? Não lhe diriam que, por ter subido à região superior, cegara, que não valera a pena o esforço, e que assim, se alguém quisesse fazer com eles o mesmo e dar-lhes a liberdade, mereceria ser agarrado e morto?
GLAUCO - Por certo que o fariam.
SÓCRATES - Pois agora, meu caro GLAUCO, é só aplicar com toda a exatidão esta imagem da caverna a tudo o que antes havíamos dito. O antro subterrâneo é o mundo visível. O fogo que o ilumina é a luz do sol. O cativo que sobe à região superior e a contempla é a alma que se eleva ao mundo inteligível. Ou, antes, já que o queres saber, é este, pelo menos, o meu modo de pensar, que só Deus sabe se é verdadeiro. Quanto à mim, a coisa é como passo a dizer-te. Nos extremos limites do mundo inteligível está a idéia do bem, a qual só com muito esforço se pode conhecer, mas que, conhecida, se impõe à razão como causa universal de tudo o que é belo e bom, criadora da luz e do sol no mundo visível, autora da inteligência e da verdade no mundo invisível, e sobre a qual, por isso mesmo, cumpre ter os olhos fixos para agir com sabedoria nos negócios particulares e públicos.
Bibliografia: "A República" de Platão - Ed. Atena






Bibliografia
ARANHA, M. L. de Arruda; MARTINS, P. M. H. Filosofando: Introdução à Filosofia. São Paulo: Moderna, 2009
"A República" de Platão - Ed. Atena
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. SP, Ed ática,2000
http://quirinofilosofo.blogspot.com.br