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sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Estética II - A arte grega e o conceito de naturalismo


O naturalismo constitui uma noção fundamental que marcou profundamente grande parte da arte ocidental, da antiga Grécia até o final do século XIX, com uma única interrupção, durante a Idade Média.

• Conceito de naturalismo

O naturalismo, segundo Harold Osborne, pode ser definido como a ambição de colocar diante do observador uma semelhança convincente das aparências reais das coisas. A admiração pela obra de arte, nessa perspectiva, advém da habilidade do artista em fazer a obra parecer ser o que não é, parecer ser a realidade e não a representação. Na atitude naturalista, podemos distinguir algumas variações, dentre as quais as mais importantes são o realismo e o idealismo.

O realismo mostra o mundo como ele é, nem melhor nem pior. É característico, por exemplo, da arte renascentista do século XV. Já o idealismo retrata o mundo nas suas condições mais favoráveis. Na verdade, mostra o mundo como desejaríamos que fosse, melhorando e aperfeiçoando o real. É o padrão da arte grega, que não retrata pessoas reais, mas pessoas idealizadas. Foram os gregos que elaboraram a teoria das proporções do corpo humano usadas para qualquer representação, em pintura ou escultura, qualquer que fosse a realidade do modelo.

O rosto, por exemplo, era dividido em três partes de igual tamanho: um terço seria ocupado pela testa, um terço pelos olhos e nariz, e o terço restante, pela boca e pelo queixo. O naturalismo foi uma atitude dominante na arte ocidental por muitos séculos, com exceção, como veremos, do período medieval. Com o movimento impressionista, no século XIX, houve outra ruptura com essa atitude, pois os artistas passaram a dar primazia às variações da luz e não aos objetos representados.

Essa mudança de atitude se deve, em parte, ao aparecimento do "bisavõ' da máquina fotográficao daguerreótipo-, que fixa as imagens do mundo de forma mais rápida, econômica e precisa do que a tela pintada. Por essa razão, os artistas, principalmente os pintores, tiveram de repensar a função da arte e o espaço específico da pintura.

O naturalismo na arte grega

Na Grécia Antiga não havia a ideia de artista no sentido que hoje empregamos, uma vez que a arte estava integrada à vida. As obras de arte dessa época eram utensílios (vasos, ânforas, copos), edificações (templos) ou instrumentos educacionais. O artífice que os produzia era considerado um trabalhador manual, do mesmo nível do agricultor ou do ferramenteiro. Ele era um artesão, tinha domínio da~. numa sociedade que considerava o trabalho manual indigno.

Platão (séc. V a.C.) recusa-se a dar valor autônomo ao que chamamos de arte. Para ele, existe uma ordem metafísica e ética no mundo, sendo tarefa da filosofia descobri-la por meio do pensamento racional. A arte só poderia ter valor se representasse corretamente essa ordem ou nos ajudasse a agir de acordo com ela. Contudo, Platão reconhece o poder da poesia sobre a alma humana e dá indícios de que aprecia os prazeres que ela proporciona. 

Com relação à beleza, termo que ele usa com muitos sentidos diferentes, entre eles desejabilidade, valor de troca e agradabilidade à visão e à audição, ela não está relacionada às artes. Platão critica, inclusive, os sofistas e os retóricos por não saberem fazer a distinção entre o que é belo porque dá prazer, do que é genuinamente bom e benéfico. Para ele, a beleza em si é uma forma, acessível somente ao intelecto.

Platão faz a crítica da beleza no mundo sensível, dizendo que é variável (algo pode ser belo em um momento e não em outro), e é relativa (algo é belo em relação a algum aspecto mas não a outros; é belo para um observador e não o é para outro). Do outro lado, a beleza como forma não é variável - "sempre é: não se torna, nem acaba, não brilha, nem desvanece" (Symposium 21Ia). Nesse período (sécs. V e IV a.C.), a função da arte era criar imagens de coisas reais, que tivessem aparência de realidade. Para que esse objetivo fosse atingido, foram desenvolvidas técnicas que permitiam produzir cópias da aparência visível das coisas.

Há várias anedotas que ilustram bem isso, embora poucos exemplares da pintura grega tenham chegado até nós. Dizem que Apeles pintou um cavalo com tanto realismo que cavalos vivos relinchavam ao vê-lo. Outra história conta que Parrásio pintou uvas tão reais que passarinhos tentavam bicá-las. Na verdade, talvez essas pinturas só possam ser consideradas realistas em relação à estilização da pintura que a precedeu ou à pintura egípcia, por exemplo. Por outro lado, temos de admirar a fidelidade anatômica das esculturas gregas, tais como a Vitória de Samotrácia e o Discóbulo. 

Essa atitude perante a arte está fundada sobre o conceito de mímese. Para Platão, a mímese seria a imitação não da ideia (essência universal) da coisa, mas tão somente de sua aparência, isto é, de um objeto concreto e particular. Além disso, só se pode imitar algo a partir de um ponto de vista, não de todos, fazendo com que a imitação não seja exata, mas parcial. Portanto, ela está longe da verdade. No polo oposto, Aristóteles afirma que a mírnese é natural para as pessoas desde a infância, por ser um modo de aprendizado.

A mímese resulta em conhecimento porque copia corretamente o objeto e o simplifica. No que diz respeito à tragédia, ela é a mírnese de uma ação, de um acontecimento, e não das paixões. É um processo ativo de seleção de partes para apresentação. Não é passivo, cópia automática, como supunha Platão. Aristóteles traz de volta a necessidade da habilidade para se fazer poesia: o poeta é um compositor-criador de tramas, e não de versos.

Embora a poesia não seja rnímese do universal, Aristóteles sustenta que, mesmo que os objetos da mímese não sejam universais, eles podem resultar em um processo que apresente universais, porque a tragédia não trata de assuntos banais. Entretanto, é no sentido de cópia ou reprodução exata e fiel da realidade que a palavra mímese passa a ser adotada pela teoria naturalista. E as obras de arte, nessa perspectiva, são avaliadas segundo o padrão de correção estabelecido por Platão:

Mímese. Do grego, mímesis, normalmente traduzida por"imitação", significava muito mais que isso para os gregos. Para Platão, as palavras "imitam a realidade". Nesse caso, a tradução mais correta para mímese talvez fosse "representar", e não "imitar". Para Aristóteles, a arte "imita" a natureza. Arte, para ele, no entanto, englobava todos os ofícios manuais, indo da agricultura ao que hoje chamamos de belas-artes. Por isso, a arte, enquanto poiésis, ou seja, "construção", "criação a partir do nada", "passagem do não ser ao ser", imita a natureza no ato de criar, e não a aparência das coisas.

Discóbolo, cópia romana em mármore do original feito pelo ateniense Miron, por volta de 450 a.C. Essa escultura é urna representação idealizada do esportista no momento de maior concentração, quando se prepara para arremessar o disco. A harmonia da composição é dada pela intersecção de dois segmentos da linha curva. Um se i.nicia na mão que segura o disco, passa pelos ombros, desce pelo outro braço e chega ao pé esquerdo que está atrás. O outro liga esse mesmo pé à cabeça, passando pela curvatura das costas. Apesar da concentração do corpo, o rosto permanece tranqui.lo. Isso faz parte do idealismo da arte naturalista grega.

Agora suponhamos que, neste caso, o homem também não soubesse o que eram os vários corpos representados. Ser-lhe-ia possível ajuizar da justeza da obra do artista? Poderia ele, por exemplo, dizer se ela mostra os membros do corpo em seu número verdadeiro e natural e em suas situações reais, dispostos de tal forma em relação uns aos outros que reproduzam o agrupamento natural - para não falarmos na cor e na forma - ou se tudo isso está confuso na representação?

(ARANHA, Maria Lúcia de A. e MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução a filosofia. 4. ed. São Paulo : Moderna, 2009. p. 438-439)

Isto é arte?


O conceito de belo, como já discutimos, é eminentemente histórico. Cada época e cada cultura têm seu padrão de beleza próprio. Na contemporaneidade, exemplificada pela obra de Leda Catunda, é comum a incorporação do cotidiano, do efêmero e dos valores difundidos pelos meios de comunicação de massa ao universo da arte. Neste trabalho, o cotidiano nos é dado pelo material sobre o qual a pintura foi feita: o cobertor com estampa de onça é a realidade concreta, compartilhada pelo observador/público.

E, se o material causa estranheza, mais espantados ficamos ao perceber que é o fundo pintado com tinta acrílica que dá forma à imagem da onça. A figura, salvo poucas manchas preenchidas com tinta colorida, permaneceintocada, deixando entrever o tecido peludo do cobertor cuja padronagem (de pele de onça) sugeriu seu aproveitamento para essa obra de arte. O procedimento de vedação do fundo faz com que a figura salte aos olhos e "às mãos", uma vez que a maciez e a fofura próprias do cobertor apelam ao nosso sentido táctil. Ao inverter o procedimento tradicional de pintar a figura, dando menor importância ao fundo, a artista estabelece um diálogo irônico com a história da arte.

O fundo, em vários tons de verde com algumas pinceladas amarelas, nos faz pensar em floresta, mata, o hábitat natural das onças-pintadas, que só são encontradas na América Latina. A onça, entretanto, apesar da feição feroz com os dentes arreganhados e as longas garras, não está em posição que nos dê a ideia de vida. Ao contrário, as pernas esticadas em direção aos quatro ângulos do cobertor lembram os animais transformados em tapetes, exibidos como troféus por caçadores e outros consumidores desse tipo de souvenir.

Assim transformados, esses animais não oferecem mais perigo. Deixam de ser selvagens, donos das selvas, temidos, para entrar nas casas e serem literalmente pisados. A onça-pintada é uma imagem, comum no imaginário popular brasileiro, da qual a artista se apropriou para criar sua obra, colocando em questão as relações entre a realidade e a representação (presente na brincadeira entre a onça-pintada existente na natureza e a onça pintada por ela); entre o registro popular (do cobertor e da imagem da onça-pintada) e o erudito (da arte); entre o selvagem e amedrontador (a onça viva) e a pacificação da morte, do extermínio.

Cruzando essa imagem de 1984 com as preocupações ambientalistas do mundo no século XXI, podemos fazer outra leitura dessa obra: a onça é um animal em extinção e sua representação como "tapete" pode levantar uma série de questões sobre a ação do ser humano na natureza; a necessidade de preservação das espécies para se manter a riqueza biológica do planeta e do país; o futuro da humanidade; a ideia de "dominar a naturezà' como condição do progresso etc.

Assim como o restante da obra de Leda Catunda desse período, Onça pintada I coloca algumas questões sobre o que é arte: trata-se de uma brincadeira ou de um projeto poético sério? O artista precisa criar suas obras ou pode se apoderar de imagens e objetos já prontos, para desconstruí-los? A arte deve ter uma função crítica? Uma pintura deve sempre seguir a tradição e usar materiais convencionais, como a tela, o chassi sobre o qual ela é esticada, ou a madeira? Será que, em outras épocas, Onça pintada I seria considerada uma obra de arte? Para ajudar você a responder essas perguntas, vamos examinar as várias correntes estéticas que vieram a determinar não só as relações entre arte e realidade, porém, mais importante ainda, o estatuto e a função da obra de arte.

(ARANHA, Maria Lúcia de A. e MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução a filosofia. 4. ed. São Paulo : Moderna, 2009. p. 437)