A ideologia em ação
Com base no exposto, vamos examinar alguns espaços em que a ideologia é veiculada e onde ela poderá ser mais facilmente identificada e criticada.
1. As histórias em quadrinhos
Os quadrinhos são um fenômeno característico da cultura de massa. Como expressão da produção cultural contemporânea, além da função de entretenimento e lazer, exercem a função mítica e fabuladora típica das obras de ficção, além de preencherem funções estéticas, representantes que são de um nova linguagem artística. Como toda produção cultural, os quadrinhos encerram ambiguidade: ao mesmo tempo que servem à consciência, podem servir à alienação; tanto levam ao conhecimento como à escamoteação da realidade; tanto podem ser criativos como alienantes.
No início da década de 1970, dois chilenos, Ariel Dorfman e Armand Mattelart, defenderam a tese de que a leitura das histórias em quadrinhos não era tão inocente como se pensava. Da impiedosa crítica aos quadrinhos não escaparam desde os super-heróis até os aparentemente inofensivos personagens de Walt Disney. Esses autores denunciaram a ideologia subjacente aos quadrinhos, nos quais as histórias escamoteiam os conflitos, transmitem uma visão deformada do trabalho e levam à passividade política.
Para eles, na maioria dos enredos a sociedade aparece como una, estática e harmônica, e a "ordem natural" do mundo é quebrada apenas pelos vilões, que, encarnando o mal, atentam contra o patrimônio (roubo de bancos, joias e caixas-fortes). A defesa da legalidade, dada e não questionada, é feita pelos "bons", com a morte dos "maus" ou com a integração desses à norma estabelecida. Resulta daí um maniqueísmo simplista, que reduz todo conflito à luta entre o bem e o mal, sem considerar quaisquer nuanças de uma sociedade em que as pessoas e os grupos tenham opiniões e interesses divergentes.
No entanto, a crítica aos quadrinhos e a outras manifestações culturais de massa, como cinema, novelas e programas de televisão, não pode ser simplista. Há produções que, mesmo sem perder a Capa do livro de Hergé, Tintin au Canga, de 1970. dimensão de divertimento e prazer, propiciam uma crítica da sociedade e de nós mesmos. Um exemplo clássico dos quadrinhos é o da Mafalda, de Quino, pseudônimo do argentino Joaquim Salvador Lavado (1932). Com humor- às vezes ácido e corrosivo –, questiona os costumes, a política, o conformismo e os preconceitos.
Os amiguinhos da consciente e crítica Mafalda representam os estereótipos da alienação, do excessivo pragmatismo e do egocentrismo, enquanto outros são contestadores e criativos. Nos Estados Unidos, Charles M. Schulz (1922-2000) criou histórias que revelam as dificuldades do relacionamento humano, com os personagens Charlie Brown, menino de bom coração, mas tímido, desastrado e um pouco deprimido; Snoopy, o cão beagle capaz de filosofar sobre a vida e que age como um adulto bem-sucedido; Lucy, mandona, egoísta e sarcástica; Linus, inseguro, com seu inseparável cobertorzinho.
Bill Watterson, outro quadrinista norte-americano, ao criar a dupla Calvin e seu tigre Haroldo, critica o mundo adulto. Não por acaso o nome do menino rebelde Calvin foi inspirado em Calvino, líder religioso do século XVI que rompeu com a Igreja Católica. Na versão original o nome do tigre é Hobbes, menção explícita ao filósofo do século XVII que tinha uma visão pessimista da natureza humana. No Brasil, artistas como Angeli, Ziraldo, Glauco, os irmãos Caruso, Fernando Gonsales e Laerte, entre outros, seja em tiras ou em charges, aproveitam temas e situações do imaginário nacional para expressar o "pensar brasileiró' e também o questionar.
2. Publicidade e midia
É verdade que a publicidade, por meio de competentes agências e suas criativas campanhas, divulga a variedade e a qualidade do que é produzido pelo mercado. Desse modo, o consumidor toma conhecimento dos produtos e pode fazer escolhas. No entanto, como vivemos em uma época de consumismo, as pessoas
são levadas a comprar muito mais do que necessitam, pressionadas por desejos artificialmente estimulados.
A publicidade não vende apenas produtos, mas também ideias. Com o produto são veiculados valores que influenciam a vida no trabalho e nas relações afetivas: "compramos" o desejo de "subir na vida", estilos de vida e convicções políticas e éticas. Nas eleições, o perfil de candidatos a cargos públicos é feito pela divulgação de suas qualidades Não abra a boca e projetos. Sem dúvida é importante que o eleitor os conheça para melhor fazer sua escolha. O risco é o marketing político, de modo convincente, criar uma imagem falsa do candidato para conseguir adesões.
Outro espaço possível de ação ideológica são meios de comunicação de massa, como jornais, revistas, rádio, tevê, internet. Pela internet, dispomos, além da troca de mensagens entre particulares, da difusão de versões on-line de jornais e de páginas pessoais (blogs) das mais diversas tendências políticas. Diante de um fato, certos aspectos são ressaltados e outros são descartados como menos importantes. Trata-se de um procedimento necessário, se considerarmos o volume de notícias disponíveis.
Às vezes, porém, fatos que deveriam ser divulgados são intencionalmente ocultados dos cidadãos. Por exemplo, no tempo da ditadura no Brasil, sobretudo no governo do presidente Médici, prevalecia a censura e não eram noticiadas greves e manifestações contra o governo, muito menos as prisões arbitrárias e ações de tortura. É bem verdade que nenhum relato é totalmente neutro.
Não se trata de distorção voluntária por má-fé, mas da inevitável interpretação que sempre fazemos de qualquer evento. esse sentido, a imprensa é formadora de opinião, o que representa algo positivo, desde que, numa sociedade plural e democrática, tenhamos acesso a diversos veículos de informação, que nos permita comparar a diversidade de posicionamentos e construir uma opinião crítica.
Quase nunca isso acontece, pois as revistas e os jornais alternativos não alcançam a mesma difusão da grande mídia e não suportam a concorrência. As distorções são evidentes quando se avalia o desempenho de governantes ou de grupos da sociedade civil. Frequentemente a veiculação da notícia é contaminada por orientações políticas. Por exemplo: ao noticiar uma greve de professores ou de operários, manchetes como "Milhares de crianças sem aula" ou "Milhões de dólares de prejuízo" fornecem a chave interpretativa da notícia. Elas induzem o leitor a desaprovar a greve, sem examinar se as reivindicações dos grevistas são justas ou não.
A diferença entre a informação ideológica e a não ideológica é que a primeira veicula interesses de grupos restritos, transforma-se em instrumento de poder e impede o pluralismo.] á a informação não ideológica é aberta à discussão e oferece espaços para debates e opiniões divergentes. Se existe o risco da mídia comprometida com o poder estabelecido, bem sabemos como a atuação da imprensa foi e tem sido importante no combate ao desmando político e à corrupção. Existem os jornalistas e repórteres investigativos, que, além de relatar e comentar fatos, trazem à luz aspectos que não são veiculados, apesar de importantes para a compreensão das notícias.
(ARANHA, Maria Lúcia de A. e MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução a filosofia. 4. ed. São Paulo : Moderna, 2009. p.120-121)