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quarta-feira, 13 de junho de 2018


Conversando com Deus
 Frei Betto

- Você acredita que ainda há espaço para mim?

- Que pergunta, meu Deus! O Senhor anda inseguro? Tem lido índices do mercado financeiro?

- É que as coisas na Terra mudam numa velocidade que custo acompanhar. Outrora, eu era conhecido como o Criador. Vocês agradeciam a mim o ciclo das estações, os frutos da terra, a chuva e os ventos, as águas dos rios e os peixes do mar. Qual mesa farta, criei a natureza para o bem de vocês.

- Sim, Senhor, sei que abusamos da oferta. No início, extraíamos dela o necessário à sobrevivência. Para não faltar, respeitávamos os seus ritmos. Depois, descobrimos como reproduzir a natureza: inventamos a agricultura e a pecuária. E o que tinha valor de uso passou a ter valor de troca. Nossa ambição de riqueza transformou a dádiva em mercadoria.

- O que fazem com a inteligência que lhes incuti? - retrucou Deus. - Que diabo de avanço científico é este que deu origem à proliferação de armas nucleares, químicas e biológicas, capazes de provocar destruição em massa? Não percebem que estão destruindo a biosfera?

- Perdão, Senhor. Andamos enrascados num paradoxo: nosso crescimento econômico não beneficia os pobres e ainda resulta em degradação ambiental.

- Outrora vocês estavam submetidos à natureza - ponderou Deus. - Havia estreita ligação entre o ser humano e o seu entorno natural. Era um caso de amor. Agora o processo se inverteu: vocês adquiriram o poder de submeter a natureza.

- Não era o que o Senhor queria? No sexto dia da Criação não recebemos a ordem de dominar os peixes do mar, as aves do céu e os répteis que rastejam sobre a terra?

- Dominar é uma coisa; violar ou estuprar é outra - reagiu Deus. - Vocês foram longe demais: envenenaram rios e mares, poluíram a atmosfera e, agora, interferem nos processos químicos que determinam o envelhecimento orgânico e manipulam tecnologicamente os processos genéticos. Aonde pretendem chegar? Querem criar vida humana em laboratório e alcançar a imortalidade?

- Somos movidos pelo lucro, Senhor. Tudo que multiplica dinheiro constitui uma obsessão para nós.

- Vocês só sabem conjugar os verbos somar e multiplicar? E subtrair e dividir? Como ficam os pobres? - objetou Deus.

- Acabar com a fome dos pobres não traz dividendos, mas clonar seres vivos é sinônimo de muita fortuna. Antes a política comandava a economia. Agora a economia submete a política e escanteia a ética.

- Não percebem que a economia está pelo avesso? - exclamou Deus.

- Explica melhor, Senhor.

- Nunca se produziu tanto com tão poucos produtores. A tecnologia de ponta substitui o trabalho vivo, condenando milhões de famílias à informalidade no setor de serviços e outras tantas à miséria. A violência globalizou-se. A dinâmica do capital acirra uma competitividade exacerbada. Ilhas de riqueza e prosperidade estão cercadas de fome e penúria por todos os lados. Vocês não se dão conta de que promovem o dilúvio e, desta vez, sem uma arca que possa salvá-los?

- É verdade, Senhor, toda a nossa vida social está contaminada pela mercantilização. Ao contrário dos antigos, já não temos uma moral que sirva de raiz à nossa visão do mundo. Nem sei se temos visão do mundo. O limite do nosso horizonte é a tela da TV. Hoje vivemos numa sociedade pluralista, onde a religião também se transforma em artigo de consumo, e a ética desmorona como base de um modo de pensar e agir comum a todos. É cada um por si e Deus por ninguém.

- Apesar disso, continuo torcendo por todos - suspirou Deus. - Sou Pai, mas não paternalista. Não haverei de interferir de novo na história humana, como fiz ao enviar meu Filho. Dei-lhes um mundo paradisíaco - um jardim. Vocês estragaram quase tudo, poluíram o lago, cortaram as árvores, espantaram os pássaros, esmagaram a grama, secaram as fontes. Agora, tratem de consertá-lo. Encontrar fundamentos ontológicos aos princípios éticos e políticos capazes de pautar a vida social e pessoal. Não faz sentido a coesão social derivar da coerção oficial promovida pelo Estado. Criei-os livres, a ponto de poderem me rejeitar e se fechar aos meus dons. Se não resgatarem a liberdade com as armas da justiça, a espiral da violência só tenderá a crescer.

Retomei o início do diálogo:

- Por que pergunta se ainda há espaço para a sua presença? Não vê que o mundo é cada vez mais religioso? Proliferam igrejas, templos, cultos, seitas, movimentos esotéricos. O ateísmo perde fiéis, a fé está mais viva do que nunca!

- Não é esse o espaço que busco - retrucou Deus. - Também a religião se torna fonte de lucro e poder. Minha pergunta é outra: há espaço para mim no coração humano? É a minha vontade que as pessoas buscam? Ou são atraídas pela vaidade, pela ambição, pelo egoísmo? Quem é capaz de me reconhecer na face de quem tem fome, está excluído e oprimido?

- Vou ser sincero, Senhor. Nesse sentido, não há muito espaço. Nossos corações desaprendem a orar, a ter compaixão, a promover o gesto solidário. Temo que, após ter rompido a comunhão com a natureza, estejamos agora esgarçando a família humana. E, de quebra, nossa sintonia com o Senhor.

- Sim, vocês me louvam com os lábios, mas não com o coração. Prestam-me cultos, mas não libertam o oprimido. Amam mais a posse que o dom.

Fiquei preocupado:

- O Senhor vai nos deixar à deriva? Vai cancelar a sua obra, zerar a Criação?

- De modo algum. Por mais estúpidos que vocês sejam, não deixo de amá-los. Nem pretendo abandoná-los. Vocês haverão de aprender com os próprios erros. Espero apenas que não demasiadamente tarde.

Antes que ele se fosse, indaguei:

- Senhor, caso queira encontrá-lo, aonde devo buscá-lo?
- Não precisa ir longe - disse ele com uma ponta de ironia. Basta um mergulho em seu mundo interior. Estou no lado avesso de seu coração. Mas prefiro que também me encontre na face dos que sofrem.

* Frei dominicano. Escritor.

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